14.1.09

Trees on the water




Smoke on the water diz a canção mas devia ser antes trees on the water. Talvez um dia as águas baixem, talvez esta noite os troncos cedam. Agora é isto o que somos, por agora é isto o que podemos ser: nas águas baças do mundo as árvores ficam, nelas a memória e o canto da floresta viva. Nelas ainda a altiva sombra do gamo e a do pastor. Nas águas imensas a flauta simples do pastor.

Trees on the water. Sim, que sei eu da terra que não seja o torvelinho insubstancial dos rios, que sei eu da pedra e do chão e da realidade última dos mundos? Se olhar para baixo vejo só o adensar da cheia, a ameaça invernal da cheia. As águas. Se olhar para cima vejo só o céu, as águas do céu. Mas não sou a terra nem o céu, não sou a dissolução nem a transcendência. Não sou ainda a morte que nunca morri.

Sobre a mudez das águas cantam árvores. Sob a nudez terrível do céu as árvores sabem.

21.11.08

Por hoje

"Clair de Lune", de Claude-Joseph Vernet (1714 - 1789), pintado em 1769

"O luar é a saudade das coisas; a saudade é o luar das criaturas"

Teixeira de Pascoaes



As coisas são o que são, são inteiramente o que são, dizem os filósofos alemães: estão aí simplesmente, e nesse estar está tudo o que elas contém. E por isso, dizem eles, um homem não é uma coisa, um poema não é uma coisa.

Estranho, porque há luar na Alemanha, e tantas vezes os seus pintores o pintaram, tantas vezes os poetas o pintaram. Mas talvez os filósofos alemães andem com o nariz mergulhado em livros grossos e pensem que a janela serve para ver as horas no relógio da torre da igreja. Talvez não tenham dado por ela. No luar as coisas estremecem; no luar as coisas gritam de mansinho tudo aquilo que realmente são, a que os nossos olhos quase chegam, as nossas mãos quase chegam. Cada coisa grita que é uma janela aberta para um mundo tão vizinho e tão maior, o mundo da verdade guardada e aguardada pela beleza, pelo terror da beleza. Sim, o luar é a saudade das coisas.

E sim, na minha saudade eu sou inteiramente o que sou, simplesmente aqui como uma coisa posta no mundo. Na saudade sou luar das minhas noites de dentro.

Não há tempo que não seja de rosas e de vampiros. Não há luz que não a da Lua. Não há verdade que não se resguarde na beleza mais frágil.

9.11.08

Transparência




Meus olhos fáceis, que vedes
tanto além do que sei ser...
Fui barca, vós fostes redes,
não vos soube inda colher.

Meus olhos claros, cansados,
a que quereis olhar ainda?
na noite em que andais fechados
a lua vejo-a mais linda...

Meus olhos simples, fechai-vos,
de que serve andar a ver?
não olheis mais, resguardai-vos:
ver muito é tudo perder.

Meus olhos nítidos, certos,
meu rosto diz-vos adeus:
traz-vos o mundo despertos?
Sois dele, então - não sois meus...

Meus olhos velhos, é tarde...
vinde agora ver-me a mim:
dizei ao mundo que aguarde,
que ides só ver o meu fim...

Dizei-lhe que não demoro,
que esta é a última vez;
que estou velho, já não choro,
ficareis livres os três...

7.5.08

Necrosofia II

Andava de blog em blog, e li:

"Aliando a subjectividade enunciativa a um forte pendor mítico de implicação lírica, que funda numa visão da vida e do mundo de tipo religioso herético, sensualista e naturalista, a sua ficção caracteriza-se por uma hibridez de registos e de convocação, temporal e espacial de entidades, que no entanto assume uma coesão que lhe é dada por uma marca discursiva persistente e inconfundível."

Sim.

Por alguma razão os mortos calam.

24.4.08

Necrosofia


"Os mortos olharam com desprezo e disseram:
- Pára de nos falar de deuses, de demónios e de almas.
Sabemos há muito a essência de todas essas coisas"

Carl Gustav Jung
Sete Sermões aos Mortos

Por alguma razão os mortos
calam.

1.4.08

Abril


O Bobo. O Joker. O Arlequim. O Espantalho. O Pierrot. O Pinóquio.

Quando era criança tinha medo de muitas coisas, medo de bruxas e de demónios, de fantasmas e de mortos, da noite e do mar. Quando era muito pequeno fechava à chave a porta do quarto à noite porque achava que o Leão assim não ia conseguir entrar. Passava a correr as páginas do meu Gato das Botas com medo de encontrar o desenho do Gigante, o desenho do Gato a comer o Gigante transformado em Rato.

Mas agora à distância como esses medos eram doces comparados com o Bobo ou o Joker ou Arlequim. O medo do Leão fazia-me só fechar os olhos, e com os olhos fechados o Leão tinha-se ido embora. Mas dentro de mim a Cara Branca continuava a sorrir quando me lembrava dela.

Não sei porquê esse medo, não sei porque é que o Pinóquio me metia um medo igual. Cresci. Já vi mortos e já vi fantasmas, já tive medo da noite no mar. Descobri que medo é principalmente o medo de nós mesmos. Mas ainda não gosto de olhar a Máscara. Troco o Espantalho por todas as bruxas do mundo, todos os dragões. Mas a Máscara, só a posso comparar com o horror frio das aranhas.

Talvez seja o riso, sabes? Talvez seja a loucura. Num mundo normal há leões e lobos e cavalos e casas, talvez haja mesmo os fantasmas que já vi e os que me aguardam na próxima rua, na próxima noite tão grande. E há loucos virados para dentro, que ficam sentados e calam-se a olhar e não dizem nada porque neles o Abismo transbordou como uma taça de águas mortas. Mas não há, não pode haver, esta loucura revirada, esta loucura serena e surda, cega e triunfante. Não pode haver o riso das trevas.

Talvez seja a inversão da ordem das coisas, porque no mundo que eu sou as coisas têm a sua ordem mesmo que sejam coisas más. Tudo vai parar à Grande Mãe, sabes, mas demorava muito tempo a explicar. Tudo. Talvez eu não tenha crescido ou nunca tenha sido uma criança pequena. Talvez o Joker seja o espelho de não sei que mundo terrível, o Pinóquio o espelho de não sei que tremendo deus. E eu fui sempre o Espelho dos Vampiros, que reflecte sem reflectir.

Ah, e também não gosto de palhaços, deve ser a mesma razão, a mesma rasa razão.

A minha Mãe levava-me ao Circo.

[a imagem é de Alfredo Palmero]

17.3.08

Diário


Tento guardar a imensidade dos mundos, a inumana imensidade dos mundos. Tento guardar o meu coração tranquilo.

Março.