27.3.04

A história verdadeira


Gosto de contar histórias, que são a única maneira de contar comigo. É nelas que por mim passa a vida, e tantas vidas por viver me dão as cores e os cheiros e os sabores de tantos tamanhos. Não sei o que há para lá do mar, nunca fui a Veneza e nunca fui a Granada. Mas não preciso de andar. Posso falar-te de Bombaim, e do barulho de uma rua em Madrid, e da cor da noite na Argentina, e dos olhos do lobo que agora está mais perto de ti, mesmo que nunca os tenha visto. No mundo fiz poucos passos; em vez disso coleccionei conchas, e ainda tenho pedrinhas que me trouxeram da Noruega, de África e da Tailândia.
O silêncio habita em mim. Mas gosto de ouvir as pessoas, e às vezes fico com aquele ar compenetrado, de olhos muito atentos, que têm o Snoopy ou o Hobbes. Às vezes passo uma noite inteira assim, a ouvir. É raro querer falar. Só aos meus grandes amigos digo tudo o que me vem à cabeça.
Esqueço sempre as regras dos jogos de cartas que me tentam ensinar, e acho que as pessoas fazem barulho demais. Gostava de xadrez, mas há muitos anos que não jogo. Gostava de envelhecer numa casa que tivesse uma biblioteca onde houvesse uma lareira e uma mesa de xadrez e em que nas noites de Inverno um amigo me viesse visitar para jogar um pouco e para ficar calado junto de mim. Nunca joguei bowling, mas sei que não tenho qualquer destreza fisica.
Preciso dos sinais que os outros não vêem. Gosto de todas as criaturas que têm em si algo de quebrado, no corpo ou na alma. Às vezes, na rua, escrevo numa folha o retrato de uma rapariga sentada à minha frente, quando o olhar e as mãos e o modo como o cabelo desobedece me gritam um pedido de ajuda que ninguém parece escutar.
Não gosto de cores misturadas. O amarelo, o azul e o vermelho puros só deviam ser usados dentro de casa. A natureza tem as suas próprias cores, e o preto é a cor que esclarece a luz. Mas é o mar cinzento que no mundo está mais perto de mim. Não sei nadar. Gosto de cerveja e as aguardentes fazem-me mal. Já bebi e já conheci outras drogas. Gosto de conduzir à noite, e de apagar os faróis quando não há nenhuma luz no mundo. Já fiz cem quilómetros por um olhar, e trezentos por um nascer do sol, mas se juntasse as músicas que me pertencem só juntaria músicas nocturnas. Não suporto o fado durante a manhã. Gosto do último momento do dia, e do último momento da noite. Gosto mais dos fins do que dos princípios, e cada vez mais para mim os princípios são apenas o prefácio da história que o fim nos vai contar. Mas as despedidas podem ser cruéis. Se tocar alguém pela última vez queria saber que era a última. Não tenho nome. Há anos que fico na fronteira de chorar. E a Lua nunca me ouviu. Não me disseram nada disto quando me mandaram crescer. E eu tentei sempre portar-me bem.
Gosto dos contos góticos ingleses, não do cego terror americano. Descobri Tolkien há muito tempo, num comboio que atravessava a noite alentejana. Gostava de poder dizer a alguém tudo o que sinto. Sou próximo dos lobos, são o meu totem ("Somos rubros lobos baços / perdidos na serrania / por entre sombras e passos / por entre a noite e o dia..."). Às vezes gostava de gritar. Não vi o Elephant Men, mas gostei muito da Bela e o Monstro, do Cocteau. Eu sou parecido com esse monstro ("Monstro de coração tão simples, hoje não quero casar contigo..."). Gostava de ter sido um príncipe, ou um cavaleiro. Gostava de fazer uma peregrinação a pé nos Caminhos de Santiago, e de chegar à Catedral ao amanhecer de 25 de Julho para rezar. Gostava de não ser eu. Gostava que o mundo não tivesse livros. Gostava que nos devolvessem as asas roubadas. Gosto de sinos de igreja. Gosto de estar sentado num baloiço sem balouçar. Gosto de me sentar no chão. Gosto de vaguear na Feira de Ladra com uns jeans velhos e umas sandálias. Não gosto de cognac nem de charutos nem de cocktails nem de diamantes. Gosto de espadas e de chapéus. Não gosto de jazz moderno. Gosto de violinos. Não gosto de conhecer pessoas. Gosto de descobrir um amigo. Não suporto barulho ao acordar. Muitas vezes acordo a tremer. Um gato adoptou-me e dormiu comigo. Gosto dos versos de Auden, mas não os compreendo ainda. Perdi-me em Londres com nove anos, e não tive medo nenhum. Perdi-me de amores aos dezasseis e tive muito medo. Perdi os versos mais bonitos que fiz e não me lembro deles. Perdi muito tempo. Gostava de escrever um romance. Gostava de saber o nome de muitas estrelas. Gostava de saber o que é ser mulher. Não gosto de chá de limão. Não gosto de luzes de néon. Gosto de varandas abertas para o mar ou para árvores, muitas árvores. Gosto de guitarras baixinho. Gosto de ficar a ver as andorinhas ao fim da tarde. Gostava de ler já a minha história para saber as páginas do fim. E os lobos, os lobos baços.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Existem historias que os antigos contam que realmente impresionam agente ,um exemplo meu vô me falou que tinha uma mulher na praia que toda vez que ele passava a chamava.Mais certa vez ele viu que a mulher chamou um homem este homem foi,quando ele chegou perto a moça se trasformou em um ser estranho sem indentificar o que era meu vô foi e deu tres tiros de de chumbo nela .Então ela largou o moço e saiu correndo pro mato,mais todo tempo de chuva este homem sai correndo em direção ao mar e some feito fantasia.A mulher deve ter mordido ele ou coisa assim...

13/12/07 17:03  

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