30.6.04

O meu país e o céu de Junho (II)

Um excerto da "Pátria", peça de teatro de Guerra Junqueiro.

CENA I - Magnus, duque de S. Vicente de Fora. Opiparus, príncipe d’Oiro Alegre. Ciganus, marquês de Saltamontes.

Noite de tormenta. Céu caliginoso, mar em fúria, ventanias trágicas, relâmpagos distantes. O castelo do rei à beira-mar. (...) Entram Opiparus, Magnus e Ciganus. Sentam-se, afagando os cães. Magnus poisa na mesa um pergaminho com o selo real. É o tratado com a Inglaterra.



CIGANUS (apontando o pergaminho e rindo)
Necrológio a assinar pelo defunto!

MAGNUS (com gravidade)
É urgente:
Salvamo-nos...

OPIPARUS (acendendo um charuto)
Perdendo a honra... felizmente!
Inda bem! inda bem! vai-se a ária das Quinas...

MAGNUS (convicto)
Glorioso pendão sobre um castelo em ruínas...

OPIPARUS
O pendão! o pendão!... um trapo bicolor,
A que hoje o mundo limpa o nariz... por favor.

CIGANUS
Enquanto a mim, que levem tudo, o reino em massa,
Pouco importa; o demónio é que o levem de graça.
Mas agora acabou-se!... e, em lugar de protesto,
Vejamos antes se o ladrão nos compra o resto...
Um bom negócio... hem?!... manobrando com arte...

OPIPARUS(soprando o fumo do charuto)
Dou por cem libras, quem na quer?, a minha parte...

MAGNUS(grandioso)
Quando d’ânimo leve o príncipe assim fala,
Não se queixem depois que a dinamite estala,
Nem se admirem de ver o pais qualquer dia
Na mais desenfreada e tremenda anarquia!

Prudência! haja prudência, ao menos, meus senhores...
É grave a ocasião... gravíssima!... Rumores
De medonha tormenta andam no ar... Cuidado!
Não desanimo, é certo... Um povo que deu brado,
Uma nação heróica entre as nações do mundo,
Há-de viver... É longo o horizonte e é fecundo!...
Creio ainda no meu pais, na minha terra!...
Guardo a esp’rança...

OPIPARUS
Bem sei, no Banco de Inglaterra...
A esp’rança e dois milhões em oiro, tudo à ordem...
Não é isto?...

MAGNUS(embaraçado)
Exagero... exagero... Concordem...
Sim, concordem... pouco me resta e pouco valho...
Mas o suor duma vida inteira de trabalho...
Economias... bagatela... um nada... era mister...
No dia d’amanhã, com filhos, com mulher...
Entendem, claro está... era preciso, enfim,
Segurança... Não me envergonho... Enquanto a mim,
Posso falar de cara alta... o meu passado...

OPIPARUS
Se é mesmo a profissão do duque o ser honrado!
É o seu modo de vida, o seu ofício... Creio
Que é daí... que é dai que a fortuna lhe veio
Ninguém lho nega... O duque é dos bons, é dos puros...
E a virtude a render, a dignidade a juros
Acumulados... Francamente, eu noto, eu verifico
Que era caso de estar muitíssimo mais rico
O duque foi modesto: a honra de espartano
Não a deu nem talvez a dois por cento ao ano!

(...)

MAGNUS
El-rei assinará?... o que julga, marquês?

OPIPARUS
El-rei nesse tratado é rei como Jesus,
E, portanto, vão ver que o assina de cruz.

(...)

MAGNUS
Que má língua! El-rei, coitado! uma criança,
Nem leve culpa tem nos encargos da herança...
Não se aprende num dia a governar um povo...
E em casos tais, em tal momento, um homem novo,
Habituado à lisonja, habituado ao prazer...
Maravilhas ninguém as faz... não pode ser!...
El-rei é bom! El-rei é um espírito culto,
Ilustrado... Não digo, enfim, que seja um vulto,
Um talento, uma coisa grande de espantar;
Mostra, porém, cordura, o que não é vulgar...
(...)

OPIPARUS (sorrindo)
Ingénua hipocrisia, duque... Olhe que el-rei
Conhece-nos a nós, como nós a el-rei...

(...)
MAGNUS (confidencial)
Marquês... dum amigo a um amigo!
Entre nós... fale franco: a ordem corre p’rigo?...
O mal-estar.., desassossego... uma aventura...
Os quartéis... Diga lá: julga a C’roa segura?...

CIGANUS
Segura e bem segura. Equivocar-me-ei,
No entretanto, parada feita: jogo ao rei!
Neste lance... No outro... A inspiração é vária,
E bem posso mudar para a carta contrária.

OPIPARUS
(...) Isto da pátria e lar
É boa fêmea, bom humor e bom jantar.
O ditoso torrão da pátria!... que imbecis!
No globo não há mais que uma pátria: Paris.
A nossa então, que choldra e Infecta mercearia,
Guimarães, Policarpo, Antunes, Braga & C.ª
Um horror! um horror! Não temam que proteste,
Se emigrando me vejo livre de tal peste.
Fico por lá... não torno mais... fico de vez...

MAGNUS(imponente)
Incrível! No momento grave em que a Nação
Dorme (ou finge dormir!) à beira dum vulcão,
Nesta hora tremenda, hora talvez fatal,
Há quem graceje como em pleno Carnaval!
E assim vamos alegremente, que loucura
Cavando a todo o instante a própria sepultura...
No dia d’amanhã ninguém pensa, ninguém!
Os resultados vê-los-ão... caminham bem...
Divertem-se com fogo... Olhem que o fogo arde...
E extingui-lo depois (creiam-me) será tarde...
Já não é tempo... As labaredas da fogueira
Abrasarão connosco a sociedade inteira!
A mim o que me indigna e ruboriza as faces
É ver o exemplo mau partir das altas classes,
Sem se lembrarem (doida e miserável gente!)
Que as vítimas seremos nós... infelizmente!
Não abalemos, galhofando, assim à toa,
A égide do Ceptro, o prestígio da C’roa!
Quando a desordem tudo infama e tudo ameaça,
A Realeza é um penhor...

CIGANUS
Destinado a ir à praça.
Questão d’anos, questão de mês ou questão d’hora,
Segundo ronde a ventania lá por fora...
Observemos o tempo... anda brusco, indeciso...
Não arme o diabo algum ciclone d’improviso!...
O trono, defendê-lo enquanto nos convenha;
Depois... trono sem pés já não é trono, é lenha.
Queima-se; e no braseiro alegre a chamejar
Cozinhamos os dois, meu duque, um bom jantar!...
O duque a horrorizar-se!... Eu conspiro em segredo...
Pode ouvir, pode ouvir... duque, não tenha medo!
A república infame, a república atroz,
Uma bela manhã será feita por nós,
Meu caro duque!... E o presidente...
Ora quem... ora quem, duque de S. Vicente?!...
O duque! Não há outro, escusado é lembrar! ...
Um prestígio europeu... a independência... o ar...
Não há outro!... d’arromba!... à verdadeira altura!...
Todas as condições, todas... até figura!
Parece um rei! que nem já sei como se move
Com as trinta grã-cruzes...

MAGNUS(lisonjeado)
Upa! ... trinta e nove!

(...)

CENA II - Os mesmos e o rei


O REI
Faz-me nervoso a noite...

MAGNUS
É da atmosfera espessa...
Eléctrica... Atordoa e desvaira a cabeça...

O REI(apontando o pergaminho)
O tratado?

CIGANUS
O tratado.

MAGNUS
Um pouco duro... El-rei...

O REI (indiferente)
Seja o que for... seja o que for... assinarei...

MAGNUS
Não há dúvida; el-rei anda enfermo... é evidente...

(...)

OPIPARUS
(...)
Pobre do rei... quem o diria!... que mudança!
Oxalá que a loucura, a vir, lhe venha mansa...


Ciganus desdobra o pergaminho e vai ler o tratado.

O REI
Leitura inútil... Deixa lá... Seja o que for...
Seja o que for... adeus!... Assinarei...

CIGANUS
Perfeito.
Não há balas? Resignação; não há direito.
Se entra no Tejo de surpresa um coiraçado,
Quem vai metê-lo ao fundo, quem? A nau do Estado
Com bispos, generais, bacharéis, amanuenses,
Pianos, pulgas, mangas d’alpaca e mais pertences?
A esquadra? vai a esquadra real, um meio cento
De alcatruzes, bidets e banheiras d’assento?
Sacrificar a vida à honra? Acho coragem,
Mas a honra sem vida é de pouca vantagem;
Não se goza, não vale a pena. A vida é boa...
Defendamos a vida... e salvemos a C’roa.

MAGNUS (eloquente)
E salvemos a C’roa! A vida eu dá-la-ia
Pela honra da Pátria e pela Monarquia!
Somos filhos de heróis! mas nesta conjuntura
A resistência é um crime grave, uma loucura
Um pais decadente, isolado da Europa,
Sem recursos alguns, sem marinha e sem tropa,
Tendo no flanco, alerta, o velho leão de Espanha,
Arrojar doidamente a luva à Grã-Bretanha,
Oh, pelo amor de Deus! digam-me lá quem há-de
Assumir uma tal responsabilidade?!...
A pátria de Albuquerque, a pátria de Camões
Abolida era enfim do mapa das nações!
(...)

CIGANUS
E enquanto às convulsões de leão popular,
Como diria o nobre duque, afoitamente
Respondo pelo bicho: um cão ladrando à gente.
Dobrei guardas, minei as pontes à cautela,
E fica a artilharia em volta à cidadela.
Não há p’rigo nenhum. Durma el-rei sem temor.
Boa noite, Senhor...

(..)
(saem o rei, Ciganus e Opiparus)

MAGNUS (vai pensando)
Ora, se o filho do alfaiate qualquer dia
Inaugurava ainda a quinta dinastia!...
Eu sentado no trono!... Eu rei de Portugal!...
Que, rei ou presidente, enfim é tudo igual...
Muita finura agora e muita vigilância,
Observando e aguardando as coisas a distância!...
Magnus! lume no olho e não te prejudiques...
Eu suceder, caramba! a D. Afonso Henriques!!...
The fallen one



Tenho comigo uma canção que me embala, e que gostava de poder pôr agora aqui com as imagens e as palavras. Na última faixa de um álbum cheio de hinos guerreiros como é próprio do power metal dos HammerFall, o grito das guitarras para o que foi ferido de morte: the fallen one.

So many things that I wanted to say forever left untold... all I can do is cry, save a little prayer for the fallen one...

Tenho comigo uma canção, e tenho tido comigo nestes dias estranhos uma tristeza funda que mais parece ferida a reabrir. Mais do que morrer, pesa em mim a morte do mundo. Não, as vossas cores já não lhe dão vida. Não, os vossos risos já não o despertam. Não, as vossas bandeiras já não sabem cantar. E cada palavra que se acrescenta é mais uma pedra que fere, e cada flor é mais um veneno que dói, e cada gesto de amor é mais uma traição que desfaz.

Tenho comigo uma canção, e tenho comigo o silêncio de todos os barcos naufragados. Tinha preferido não ter olhos e não ter alma que neles se espelhasse. Tinha preferido que no mundo não houvesse livros, nem estátuas, nem igrejas, nem rosas bravas. Tinha preferido não ter chegado tão longe, sempre tão perto de sítio nenhum. Mas agora é tarde, muito tarde, tarde demais.

Tenho comigo uma canção, e tenho comigo guardados os tesouros de todos os impérios apodrecidos. Tinha preferido não ter sabido o que nós homens podíamos ter sido, o que nós homens nunca viremos a ser. Não ter sentido a grandeza tão frágil. Tinha sido mais fácil se as minhas mãos nunca se tivessem rasgado na pedra lavrada, se o coração não tivesse querido abraçar o mundo todo.

Tenho comigo uma canção, mas a morte é sempre um acto solitário. E tantas, tantas coisas para dizer. A ti ensinaram que o mundo anda contente, que com mais uma cor e uma palavra e um sonho de amores-perfeitos as coisas irão andando e tu com sorte andarás com elas. Eu preferia que cavalgasses por aquele céu ensanguentado. Porque se ficares onde nasceste talvez vivas mais, mas não verás crescer à tua volta a sombra maior.

Sabes, as únicas coisas que importam são o sangue e as velhas canções e os barcos no mar e as rosas mortas. As únicas coisas que vale a pena dizer são aquelas que não consegues calar. As únicas coisas dignas de ti são as que edificarem uma nobreza nova frente aos mundos que vão morrer. Forja em ti uma alma que te deixe ser inteiro como inteiros são os poemas e os animais. Combate pelo mundo, enquanto o mundo durar.

Deus sabe que eu tentei. Mas a espada caiu-me das mãos. E agora tenho comigo uma canção, e tenho em mim o cheiro da morte matada. Estou cansado, muito cansado. Mais uma vez não sei chorar. Saberias tu cantar a vida que eu podia ter tido? Saberias rezar pelos caídos?

[.....]

Como antigamente, no regaço amado,
(Venho morto, morto!...) deixa-me deitar!
Ai, o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...

Canta-me cantigas, manso, muito manso...
Tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
Que a minh'alma durma, tenha paz, descanso,
Quando a Morte, em breve, ma vier buscar!...

(versos: Guerra Junqueiro, regresso ao lar, do livro Os Simples;
pintura: Andrew Vicari, La veillée du soleil)

29.6.04

O meu país e o céu de Junho

Ai como é difícil voltar aos caminhos justos. Hoje lembrei-me destes versos, e mesmo sabendo que andam escritos numa língua morta me parece que vale a pena deixá-los. São de Robert Brasillach. Um escritor francês de direita condenado à morte em 1945 por De Gaulle. Estes versos foram escritos na prisão, aguardando o fim.


Mon pays m’a fait mal par ses routes trop pleines
Par ses enfants jetés sous les aigles de sang,
Par ses soldats tirant dans les déroutes vaines,
Et le ciel de juin sous le soleil brûlant.

Mon pays m’a fait mal sous les sombres années,
Par les serments jurés que l’on ne tenait pas,
Par son harassement et par sa destinée,
Et par les lourds fardeaux qui pesaient sur ses pas

Mon pays m’a fait mal par tous ses doubles jeux,
Par l’océan ouvert aux noirs vaisseaux chargés,
Par ses marins tombés pour apaiser les dieux,
Par ses liens tranchés d’un ciseau trop léger.

Mon pays m’a fait mal par tous ses exilés,
Par ses cachots trop pleins, par ses enfants perdus,
Ses prisonniers parqués entre les barbelés,
Et tous ceux qui sont loin et qu’on ne connaît plus.

Mon pays m’a fait mal par toute sa jeunesse
Sous des draps étrangers jetés aux quatre vents.
Perdant son jeune sang pour tenir les promesses
Dont ceux qui les faisaient, restaient insouciants.

Mon pays m’a fait mal par ses fosses creusées
Par ses fusils levés à l’épaule des frères,
Et par ceux qui comptaient dans leurs mains méprisées
Le prix du reniement au plus juste salaire.

Mon pays m’a fait mal par ses fables d’esclave,
Par ses bourreaux d’hier et par ceux d’aujourd’hui,
Mon pays m’a fait mal par le sang qui le lave,
Mon pays me fait mal. Quand sera-t-il guéri ?

Meditações no dia de S. Pedro (será?)

Eu sabia que isto um dia ia parar aqui. Juro que tentei evitar. Num dos primeiros textos disse mesmo "deixemos que os mortos enterrem os seus mortos". Mas também já contei aqui (a 28 de Maio, faz agora um mês) a história verdadeira (de facto nao há coincidências) do cavaleiro português que na "medonha" idade média foi a cavalo às cortes de Espanha (a Castela e a Aragão) e de França para saber como se libertar, sem desonra, de um compromisso de honra. E a do nascimento do "mundo moderno" contado por Fernão Lopes. E ainda ontem disse também que os sonhos não devem tapar as coisas feias. Portanto aqui vai.

Sobre o prestígio que vem para Portugal do facto de alguém ir para a "Europa": digam-me sem pensar de que país é o Sr. Koffi Annan.

Sobre a "unanimidade" da escolha: rever o fabuloso diálogo inicial do "Yes, Prime Minister": "precisamos de um pateta... isto é, de uma pessoa capaz de assegurar os equilíbrios..."

Sobre o senhor que (dizem que) se segue: does it really matter?

Sobre as vozes discordantes dentro do partido: mas não são os que formaram governo sem eleições quando o Dr. Sá Carneiro morreu?

Sobre o PP: fica melhor assim :P:P

Sobre eleições antecipadas: nao bastaria um referendo, tipo "prefere os amigos do que fugiu ontem ou os amigos do que fugiu há dois anos?"

Sobre Portugal no meio disto: a final é no Domingo, não é?

Sobre mim no meio disto: os versos do Pedro Homem de Mello

Quando os banqueiros fugirem dos palácios comprados
e no seu lugar os homens verdadeiros
forem monges, poetas ou soldados...


E pronto. Amanhã voltarei ao que era, se deus me der juízo.


27.6.04

"Onde estavam ontem os meus olhos?": meditação sobre a rapariga do outono, o porquinho que queria ser salsicha, e o sonho real dos guerreiros

De tal maneira é nítida para mim a "rapariga do outono" que me custa a crer que quem a pintou não tenha dado por ela. E fico contente por a termos encontrado nós. Mas...

Mas há uns tempos atrás, já não recordo quando, vi um anúncio na televisão: um desenho animado em que um porquinho "fofinho" estava muito triste... porque não conseguia ser salsicha para fazer as crianças mais felizes. As crianças devem ter adorado, e a empresa das salsichas aumentado os seus lucros. Mas eu digo que quem inventou isto devia ser fuzilado por alta traição à humanidade.

A rapariga do outono é real, sim. Está lá inteira. E do mesmo modo está, encontrei-a mais tarde, uma rapariga de saia azul, com o cabelo curto e um bébé ao colo, como se fosse a Nossa Senhora de Outubro - a saia é a mancha azul dentro da mancha de fogo das árvores da esquerda, alguém a vê?... Mas que isto não sirva para se dizer "quero lá saber do sofrimento do porco, quero lá saber que o rio ande poluído com os detritos da fábrica de salsichas; eu posso sempre ver o porquinho que queria ser salsicha, posso ver SÓ a rapariga do outono e a nossa senhora de outubro".

Cuidado com os sonhos, se os sonhos forem o ponto de fuga. Por isso os defensores dos animais, na América, diziam que talvez bastasse uma lei para resolver muitas coisas: que os matadouros tivessem de ter paredes de vidro. É isso, paredes de vidro. Para que a rapariga do outono não esteja a tapar o matadouro e a fábrica de salsichas, para que se perceba que uma anda ao lado da outra como o amor anda ao lado da morte. Como o sonho verdadeiro vive à luz da espada maior. E por isso não acreditem na "inocência" dos sonhos e não acreditem no desespero das feridas. Porque só os guerreiros realmente aprenderam a olhar.

E eu queria que tu fosses capaz de reconhecer a rapariga do outono e o rapaz da borboleta e a nossa senhora de outubro, mas também que visses todos os matadouros do mundo como se todas as paredes fossem feitas do vidro mais puro. Não desvies o olhar. Não feches os olhos, mesmo quando as lágrimas queiram tapar a cara toda. Não te distraias com as luzes. Não te distraias com os barulhos. Deixa a noite habitar o teu coração. Aprende a abrir o caminho com a espada dos sonhos. Aprende a receber as feridas do mundo. E em cada momento de estar contigo poderás dizer, diante de um novo amor como diante de uma nova morte: "Nasço outra vez! Onde estavam ontem os meus olhos?"

25.6.04

A rapariga do outono


Sou eu que a imagino? Deixa os teus olhos descansar e vê bem o lado direito desta pintura: de pé junto da água, alta e frágil como as árvores do outono, uma rapariga magra vestida de lilás, a saia comprida mais escura, com o cabelo dourado a cair pelos ombros, as mãos talvez traçadas à frente... Vêmo-la de lado, a olhar a paisagem de que é feita. Quase ouvimos o barco a chegar do outro lado, os remos a descer o rio parado. Como ela vai parada também, como se aguardasse apenas um pouco inquieta. E atrás dela o dia ficou mais escuro.

O pintor não a pôs lá. Mas o mundo é também o que nós nele queremos ver.

23.6.04

Mais perto daquele lugar



Quando te puseres a caminho de Ítaca, deseja em ti um caminho longo, rico em peripécias e experiências. Não receies os Lestrygons, nem os Cíclopes, nem a cólera de Neptuno: não os hás-de encontrar no teu caminho se os teus pensamentos forem nobres, se o teu corpo e a tua alma se não deixarem tocar senão pela luz sem baixeza. Nem os Lestrygons, nem os Cíclopes, nem o orgulhoso Neptuno encontrarás, a menos que os tragas já em ti mesmo, a menos que o teu coração os levante contra ti.

Sim, deseja que o caminho seja longo, que muitas sejam as manhãs de Verão, onde (e com que delícia) entres nos portos a primeira vez percebidos. Detém-te nos mercados fenícios e adquire belas mercadorias: pérola e coral, âmbar e ébano, mil variedades de entontecedores perfumes. Visita as cidades egípcias e nelas instrui-te com os sábios.

Guarda sempre Ítaca presente no teu espírito. O teu último fim é o de lá chegar, mas não seja por isso que encurtes a viagem: vale mais que te dure ela longos anos, e que enfim chegues à ilha nos dias da tua velhice, rico de tanto que Ítaca te enriqueceu.

Porque Ítaca te ofereceu a bela viagem: sem ela não te terias posto a caminho. E não tem mais nada para te dar.

E se a achares pobre ela não te enganou: sábio como te tornaste no decorrer de tantas experiências, já entendeste o que significam as Ítacas.

[Texto: tradução minha da versão francesa, de Marguerite Yourcenar, de um texto de Constantin Cafavy. Quadro: A Viagem, de Caspar David Friedrich]

22.6.04

The Sum(mer) of all fears


Estes dias tenho andado assim. Não sei como vou atravessar este Verão de cores enganadas. Não estou sequer triste. Morrem-me pedaços todos os dias como a outros lhes cai alegremente a pele do primeiro sol. Eu, que posso passar um dia inteiro no Algarve sem cremes, preciso de um protector para a alma, factor 60. Até a noite cheira como uma multidão. Adormeçam-me até Setembro. Levem-me à Islândia ou à Noruega. Contem-me histórias de reis e de fadas, de vampiros e de amor verdadeiro. Calem-se. Eu não suporto as cores do barulho.

Dava tudo por um silêncio, por uma respiração da terra, por um recolhimento que o Verão não sabe ter. Há demasiada cor, demasiada luz, demasiada planície, demasiada alegria para os meus olhos cansados. E eu bem sei que tudo isto tem, talvez, outra leitura. De anos de inconsciente estudo e de anos em que dei aulas ficou-me guardada a ideia de que o Ano acaba em Julho. É, portanto, tempo de balanço, de medida, de colheita. É o tempo da consciência de si (o signo de Leão) e da colheita e arrumação do mundo (o signo de Virgem). Signos que no meu mapa astral nunca andarão de bem comigo... Em cada Verão me apercebo melhor de que a minha vida nunca foi mais que poeira no vento quente. Por isso preciso do Outono, em que posso voltar a ser as folhas mortas, preciso do Outubro, em que posso voltar a ser a neblina fria. E Outubro é um tempo que sabe a cerveja preta...

Sim, dava tudo pelo silêncio. Dava tudo por um abraço que me calasse de vez.

[quadro: Andrew Vicari, Blue (1970)]

21.6.04

Amanhã

Amanhã é em português uma palavra triste. Porque amanhã quer dizer que os mares incertos do futuro vieram ter connosco como se fossem as primeiras ondas. "Amanhã se verá" e quer dizer que hoje já não sei, "amanhã farei" e quer dizer que hoje já vou cansado. Penso que são os pais que ensinam a história aos filhos pequenos, "hoje não te dou chocolate. Amanhã." E amanhã quer dizer esperar. Talvez ela amanhã goste de mim.

E por isso em português - porque em português ficamos sempre na beira-mar das coisas - o "amanhã" é desesperadamente compensado pelo "momento". "Vive o momento, vive cada momento como se fosse a loucura triangular do espaço azul com anjinhos lilases a piscar os olhos". Vai buscar as energias positivas e as luzes e distrai e principalmente não olhes para amanhã, porque amanhã não sabemos o que vai ser. "Aproveita" o momento, porque "amanhã" a alma terá passado o prazo de validade.

Não, de facto não gosto de anjinhos lilases, e a energia positiva faz-me mal. Quase todos os meus momentos são inteiramente desaproveitados, e por isso lhes posso chamar momentos livres, mesmo quando ando a trabalhar ou ando fechado por dentro. Por isso não me alegro com os "momentos" de sol que o Verão terrível talvez traga. Por isso não aprendo nada, e não esqueço nada. Guardo e aguardo. Por isso o meu espaço é o tempo inteiro, e todos os milénios são próximos da minha memória. Em mim o mar não começa amanhã, ando desde sempre no alto-mar da vida (estranhos passos) e em cada noite vejo as estrelas caidas da noite do fim.

Talvez por isso não faço na vida muita coisa, mas sou na vida muitas coisas. Talvez por isso um dia regresse a casa. E talvez seja isso tudo o que podemos esperar.


20.6.04

Agora teria de escrever o fogo, e a dança exactíssima do fogo.

19.6.04

Fire, burn!



Isto sou eu hoje.

18.6.04

Elogio do Outono, em tempo de Junho maior

"When the autumn comes I'll be waiting for you"
(Birds of passage, by The Mission UK)


Eu entendo que nunca te sentiste tão livre como no dia em que ultrapassaste a correr o vento Norte. Que sabes bem que os anjos nunca foram beijados, e por isso o seu desejo é sempre mais forte que as asas inúteis. Que só te interessa o mar que traga consigo uma onda maior. E sei bem como é difícil não voar directamente ao sol. Mas fico com pena se já tiveres adormecido quando chegar o tempo selvagem das vindimas.

É verdade que as palavras brilham nas tuas mãos como se fossem cintilações de loucura. Que à tua volta anda já a canção irresistível das coisas simultâneas. Que os teus pés não sabem de caminho por que não valha a pena sangrar. E sei bem como é difícil não soltar de nós o grito aberto. Mas tu merecias estar pronto quando chegar o tempo perfeito da taça de vinho.

Hoje pensei que se tivesse de te ensinar de uma vez tudo o que aprendi, te diria para olhar em vez de tocar as estrelas, para escutar em vez de soltar as palavras cristalinas. E que se tivesse de te dar de uma vez o segredo das coisas vivas, te diria para meditar no mistério da maturação dos mundos. E sei bem como é difícil amarrar os póneis selvagens. Mas só saberás da alegria verdadeira se deixares chegar lentamente o tempo dourado da embriaguez.

17.6.04



Porque é culpa, se alguma coisa é culpa,
não multiplicar a liberdade de um ser amado
de toda a liberdade que em nós possamos achar.

Onde amamos, temos apenas isto:
deixar-nos uns aos outros; porque prender-nos
é-nos fácil e não é preciso aprendê-lo.

Rainer Maria Rilke
(trad. de Paulo Quintela)


16.6.04

Lume

Faz da nocturna ribeira o espelho liso
em que inteira contemplas os cansaços,
e a dança adormecida dos teus braços
há-de acordar, serena, num sorriso;

e deixa em rosas bravas florir passos
que te tragam de novo onde é preciso:
ao fim incerto de um dia indeciso
onde te aguardem asas de anjos baços...

Perguntei-te o teu nome quando andavas,
altiva e frágil... linda... pelas ruas?
(uma vez, sem saber, deste-me lume...)

Pois não dês nome às simples rosas bravas,
nem as olhes sequer (elas são tuas
para o momento meigo do perfume...)

14.6.04

O quinhão que nos toca

Na noite tão grande gritou de dor, sou tão pequena, e nem um anjo desceu para a confortar. Na noite tão grande gritou ao meu lado, e acordei para aqueles olhos azuis imensos muito abertos, e havia sangue nos meus lençóis, e ela tão calada só o grito, e a seguir a estupefacção da carne morta. Tenho sono, pensei. Mas ele está morto. Coitadita, o que faço contigo?

Na noite tão grande gritou sim, e é verdade que os gatos são tão pequenos. Não pude fazer grande coisa. Estive ali, tempo atrás de tempo, junto da gata que veio à minha cama pedir ajuda, mas não sei dar vida a gatinhos mortos. Era a manhã de Sábado, a primeira ninhada. Nunca tinha visto uns olhos assim. Nunca mais me digam que não se podem sentir as asas da morte. Nunca mais me digam que somos muito diferentes. E com a noite voltou o sofrimento dela, e foi esta a minha noite de Santo António. Não fiz muita coisa. Estive ali. Junto de quem confiava em mim absolutamente, junto de quem nos momentos piores não desviou de mim os olhos azuis. Dois gatinhos morreram ao nascer. Não sabia que um parto podia durar tanto. Mas agora tudo passou, e junto a mim tenho uma bolinha preta e branca que até agora se recusou a morrer. Sou responsável por mais uma vida, eu que nunca soube tomar conta de mim.

É o mesmo o destino dos filhos dos homens e o destino dos animais; um mesmo fim os espera. Como a morte de um, assim é a morte de outro. […] Todos vão para um mesmo lugar. Todos saíram do pó e ao pó hão-de voltar todos. Quem sabe se a alma dos filhos dos homens subirá às alturas, e a alma dos animais descerá ao fundo da terra? E reconheci que não há felicidade maior para o homem do que alegrar-se com as suas obras. Este é o quinhão que lhe toca.”

Eclesiastes (um dos livros da Bíblia) 3:19


13.6.04

Um desenho a lápis

Lembro-me tão bem de a ver a primeira vez, camisola de lã e saia curta e uns olhos que diziam desisti de fugir e o que interessa está sempre um bocadinho mais além. Parecia tanto que estava ali porque sim, tão frágil, agarrada ao namorado quase pousada nele, tanto que olhei o rapaz para saber por ele se estariam tristes e as mãos dela estavam agora nos bolsos. Parecia aquelas bonecas de pano que só se seguram sentadas e ficam a olhar com olhos grandes, seriam as meias às riscas vermelhas que lhe davam ar de brincar, mas os sapatos castanhos rasos davam-lhe era ar de gostar de cinema e de saber muito bem quem é a Sandrine Bonnaire, parecia vestida aos bocadinhos e desisti de fugir diziam sempre os olhos grandes como braços caídos. Lembro-me tão bem, eu estava a folhear um livro da Ana Teresa Pereira a Linguagem dos Pássaros, e eles pararam no Jack London mas não, era um livro verde ao lado que já não pude saber.

Bonecas de pano eram as cores dela, castanho e preto e vermelho, mas as bonecas assim quase sempre têm tranças e esta tinha o cabelo cortado curto da cor do mundo ao pôr-do-sol e reparei que no meio do pescoço o cabelo se afastava como se ali estivessem estado as mãos dele e ele disse vamos embora mesmo ao meu lado e ela nem respondeu, começou a andar. Tão frágil e os ombros magros, quase pousada em daqui a bocadinho quase ainda não.

Voltei a vê-los depois mas foi à noite e no Bairro e as meias às riscas sapatos ajuizados foram as primeiras coisas que me encontraram e percebi que se agarrava àquilo de que gostava como se tivesse medo de cair, sempre quase pousada nele e talvez falasse a linguagem dos pássaros. Depois ele trouxe cerveja e ela aceitou e ficou à espera que ele pagasse, e não olhou ninguém nem sequer o copo, parecia à espera que chegasse daqui a bocadinho ou que chegasse outro sítio qualquer. Saíram do bar, tão frágil, e eu fui ver onde iam olhos tão grandes e estavam sentados na rua, ele ria e falava e talvez acendesse um cigarro e ela tinha o copo cheio como se nem tivesse dado por isso e olhava em frente à altura das minhas mãos.

Gostava de ter parado para a ver como se pegasse numa criança ao colo, ver se o cabelo ainda estava separado atrás e se a pele era tão branca como me tinha parecido à luz da FNAC com as veias tão lá ao fundo, ver o que havia no saco castanho que ela abraçava como se tivesse lá o resto da linguagem dos pássaros. Gostava de ter perguntado porque é que os teus olhos são tão grandes se não queres sorrir e em pequena aposto que tiveste tranças e te rias com a cabeça deitada para trás o que aconteceu? Deixa-me ver devagar as tuas mãos, sabes, quando as pessoas se calam é nas mãos que choram as coisas do fundo.

Gostava de ter perguntado sim. E gostava de a não ter voltado a ver, não há coincidências, sob as colunas de pedra tão negras à volta, era uma quarta-feira acho eu, e de repente era ela tão frágil quase pousada na pedra quase pousada na escuridão e com uma amiga, seria amiga ou seria não ter o namorado deve ser isso pela maneira como ela agora olha para o copo e para toda a gente como se quisesse dizer eu agora estou aqui mas esqueceste-te como isso se faz, não é? E depois outra vez, agora era uma terça-feira, noite de Pixies dizia o cartaz, e de repente na mesa do fundo ao meio lá estava quase pousada e claro era o preto vestido e eu também (ela tão frágil) e onde te esqueceste das meias às riscas e da vontade de brincar mas sempre os sapatos ajuizados que ali pareciam dois bocadinhos de tarde perdidos na noite. Noite de Pixies por fora, noite quieta em mim e de beber nela e dançar sozinha mas aquela não era a música certa. Não era, porque na mesa estavam mais dois com ela mas esses só tinham olhos um para o escuro do outro e ainda um rapaz de óculos que dançava imenso e ela sentava-se como se fosse sozinha e na música a seguir ia dançar no mar das colunas negras para ir ficando assim como se a música estivesse a acabar, e sentava-se outra vez e acendia um cigarro como se fosse uma conversa.

Gostava de a não ter voltado a ver, olhos grandes que diziam desisti de fugir, desisti de ficar na música certa. Gostava de ter perguntado sim, a primeira vez que ouviste Pixies estavas sentada numa almofada azul quarto branco e eras e que coisas te fizeram assim ainda te lembras? tenta é muito importante tenta tudo mas não dances assim como se te tivesses ido embora quase toda, como se gritasses na linguagem dos pássaros noite branca tive tranças, como se fosses a vítima a seguir.

Senta-te aqui queria eu dizer, estou a ouvir-te, fala, não é tarde e não olhes assim como alma quase pousada no corpo, desisti de fugir desisti de fingir, com esse teu ar queria lembrar-me de acordar. Eu sei o que vais dizer, que há muito tempo escondido dentro de ti mas por fora não sabes o que há, daqui a bocadinho mais além. Ouve, agora falo eu, lembras-me um caderno de linhas por abrir e lembras-me o sabor dos bolos na escola e o banco de jardim onde uma vez ela me disse junto a ti percebo o Douro, podias sentar-te nele tão frágil quase pousada. Não dances assim. Essa é a dança de não acordar e eu compro-te meias às riscas vermelhas a cor que quiseres desde que tenhas vontade de brincar. Senta-te aqui era eu tão frágil, e com umas mãos assim deves saber desenhar e dentro de ti guardaste os sapatos ajuizados e perdeste as meias às riscas vermelhas mas é mesmo assim a vida e se te tocasse agora não era por mim, era ter a certeza de que a escuridão não passou por ti na FNAC e se esqueceu de compor esse bocadinho de cabelo junto ao pescoço. Se te tocasse era para te entregar a almofada azul.

Lembro-me tão bem de te ver a primeira vez. Lembro-me tão bem de tantas coisas. Não dances assim. Não deixes em mim esses olhos tão grandes, não deixes os meus andar em ti quase pousados. Gostava de fazer o teu desenho a lápis.

12.6.04

As máquinas da destruição

Lembro-me de ser pequeno, e de misturar a plasticina e as tintas de todas as cores, em busca do arco-íris magnífico. Mas o resultado era sempre o horrível castanho, e não havia mais nada a fazer. One colour.

Lembro-me de crescer, e de ver os homens ter vergonha daquilo que os distingue, e orgulho naquilo que os mistura, em busca da paz das ovelhas adormecidas. E o resultado é este mundo feito de coisas fofas todas iguais. One world.

Beleza Americana.

É na arte, ou no que resta dela, que as coisas têm descido mais baixo. Há umas semanas atrás, em Londres, uma exposição da vanguarda planetária fez furor: digladiavam-se dois artistas pela palavra final. Um deles apresentou uma composição feita de moscas mortas. O outro, uma feita de ratazanas mortas. (para que se saiba, este esterco tem um nome: Saatchi)

As Máquinas da Destruição é o título de um livro magnífico de ficção científica, da FC americana de antes do descalabro do Vietname. Como toda a grande ficção científica, é uma parábola sobre o Homem. Do fundo do Universo chegaram um dia máquinas semeadoras de morte. Eram robots programados para matar. Eram talvez os restos de uma guerra esquecida milhões de anos atrás, e os seus criadores eram talvez agora apenas cinza de estrelas. Mas os robots não sabiam que a guerra tinha acabado. E encontram um Império onde reinavam os homens do fim, forjados no algodão.

As Máquinas da Destruição andam entre nós, e nós somos o seu pasto inconsciente. Olha à tua volta, e vê um mar de queixas de sentimentos maus. E a tentativa de os combater com bons sentimentos, que nunca houve tantos como nestes dias frios. Amor, compreensão, energia positiva. Paulo Coelho.

É claro que as coisas não são assim. Mas para ver a realidade era preciso dispor de óculos que nos dessem o infra-vermelho das almas. Esta não é uma guerra de sentimentos. As Máquinas da Destruição são feitas de ideias. E são feitas de ideias feitas. São essas ideias que nos destruirão, se as não destruirmos antes.

One colour. One world. A Irmandade dos Adormecidos. Dos que se irão divertir até ao final, lamentar até ao final, aproveitar até ao final. Um mundo em que as ideias não têm de ser claras, as mãos não têm de ser firmes, os corações não têm de ser puros. Em que tudo tanto faz. Em que cada um sabe da sua verdadezinha pequena. Em que todos somos iguais em pelo menos não ser nada inteiramente.

Eu vejo aqui e ali fogueiras de vigia. Vejo-o, para falar deste mundo-dos-blogs em que estamos, nos blogs negros (ah, cuidado com os blogs pintados, com a maquilhagem esborratada). Os blogs de querer ver o infra-vermelho dos mundos.

Sim, os mais novos podiam ser uma esperança. Mas cuidado. Cresceram demasiado envenenados. Vivem em busca de um negro fofo, ou em busca de um sentimento maior. E os sentimentos nunca serão maiores que o mundo que os suporta, e o mundo nunca será maior que as almas que lhe derem sentido.

Às vezes vejo, aqui e ali, olhos abertos na escuridão. Talvez sejam lobos que se mantém na periferia dos mundos. Talvez sejam apenas salteadores de estrada à espera do Capuchinho Vermelho de todas as histórias. Os lobos, esses, não se misturam, orgulhosos da sua solidão. E é verdade que a sua grandeza está na sua solidão. Mas por isso não saberão também os lobos descer à cidade suja, nem para um último combate. E a cidade será cada vez mais o império das ratazanas mortas.

Beleza Americana. One world. One death.

11.6.04

Mil

Mil visitas, cem posts, setenta e um dias. Mil e uma noites. Gostei das palavras que aqui deixaram. Dos silêncios também. Recordo o grande Jean d'Ormesson, falando a uma rapariga que lhe escreveu: "Gostas das minhas palavras porque foi para ti que as escrevi".

10.6.04

Sobre danças, cores e outras coisas menores

Ser é, antes de mais, ser incompleto. Olhar o mundo é saber a corda frágil que atravesso até cair nos abismos calados. E por isso vou trazendo para junto de mim as palavras e as cores e a música que me emprestam a forma ágil e me sustentam ainda um instante aquém do mergulho inevitável.

Ser é, antes de mais, ser desmedido. Olhar por dentro é saber o lugar imenso de asas que só podem ter sido roubadas. E por isso procuro sentir, e o cinzento se mistura em mim com a palavra cinzento e com aqueles sulcos frios que o violino me deixou e escuto as asas que doem como doem os membros amputados.

Ser é, antes de mais, soltar o grito amarrado. Olhar o tempo que sou é saber o grito que a eternidade me vai ser, a insensatez das coisas simultâneas. E por isso não me detenho a coleccionar o mundo à minha volta e a traçar mapas de trilhos que não levam a lado nenhum.

Ser é, antes de mais, beijar em ti a forma pura. Olhar-te é elevar o teu corpo ao mistério que o concebeu, sem saber dar por mim os passos firmes. E por isso aprendo a ver como se tudo estivesse aí desde sempre, e é verdade que a minha alma desde sempre foi.

Mas ser é, antes de mais, dançar a dança dos mortos. Olhar o que sou é refazer os traços dos ossos e da noite vagabunda dos ossos, e abraçar a marca que fizeram na neve estranha dos mundos maiores. E por isso me faço acompanhar da espada clara, que há-de bordar a ouro as letras do fim nas rosas mortas.

(com Tristania, Wasteland's Caress)

10 de Junho

Tragam rosas brancas
para a Pátria morta
dispersos no tempo
somos folhas no vento
somos folhas no vento
que correm a terra
Para a Pátria morta
tragam rosas brancas

Tragam rosas brancas
para a Pátria morta
num lençol de linho
há sombras de sangue
foi morta dormindo

(Pacheco de Amorim)

9.6.04

Ai como quase há no branco
luto de branco vestido...

Os silêncios brancos são.
Os passos todos de branco.
E as noites nada lhes dão
nada mais lhes dá o branco.

Ai como quase há no branco
luto de branco vestido...

Lençóis de branco pintados
quem dorme neles não dorme.
Vai negro o dia aos bocados
branca vai a noite enorme.

Ai como quase há no branco
luto de branco vestido...

Branco cruel lume branco
branco-escuro em nós os dois
Ontem coração em branco
negro em coração depois.

Ai como quase há no branco
luto de branco vestido...
A Senhora da Rocha (III)

Rapazito era ele sim, grumete embarcado que não sabia da noite mais do que os olhos levavam, e que gostava das lendas do mar. Mas os seus olhos pareciam luas e morava neles a ambição da noite inteira...

E o mar, disse o mais velho, fez-se nessa noite a batalha mais alta. Talvez fosse ao largo de Lomond’hir. Há duas noites que não viam terra e o vento arrastara ao céu as cordas frágeis. As águas eram a muralha negra que os não queria deixar passar.

Sim, respondeu o mais novo. As ondas que são o escudo do gigante mar. O vento que é a sua espada maior. O trovão grito de guerra. Ah, gritou o velho, e a tempestade que sabe ser a cor mais terrível, a cor da morte a crescer. Há duas noites não viam terra, e o grumete de olhos de lua não parara um instante, nem um instante fechara os olhos e segurava nos braços o navio tão frágil como se fosse um filho doente. Duas noites com todos os homens iguais. Duas noites de fim. Houve quem fizesse em si a onda enrolada, e esses caíram como se fossem mastros a arder. Houve quem visse asas com garras a rasgar as velas e os peitos fortes e saltasse ao mar, como se houvesse ainda para onde ir. Houve quem se perdesse na maldição maior. Mas o grumete não caía. Corria o navio todo e olhava as mortes com os seus olhos de lua e tinha palavras de emprestar a força. Sim, duas noites e já tudo estava perdido.

E o mar também corria o navio todo, murmurou o mais novo como se não quisesse falar. Como se quisesse lavá-lo bem antes de a morte chegar. E também olhavam os homens os olhos tão abertos do abismo sem luz. E eram as águas da noite, e havia rochas mais duras que o destino dos marinheiros, mais cortantes que a maldição maior. E o navio inteiro gritava como se mãos fortes segurassem o seu corpo delgado. Sim, estou a ver o mar o céu. E a figura de pé, com os braços cruzados como se fitasse sempre o lago gelado.

E os cabelos de fogo, lamentou-se o mais velho, os cabelos que brilhavam na noite a abrasar as almas quebradas. Que eram a porta do inferno maior. Era ela nas rochas sim, a mulher que nos faz tudo estar perdido, e o grumete não sabia dizer se era um manto negro que tinha ou se guardava nos ombros as asas dobradas. E o muro das ondas era agora o véu que voltava ao seu rosto quieto e aos seus olhos terríveis de verde acordado. À volta dela passavam troncos gigantes que tinham sido mastros e troncos pequenos que tinham sido marinheiros, e talvez o grumete ouvisse a voz da Black-Cathie ou talvez ouvisse só o vento a cantar. E finalmente fechou os olhos, porque já não tinha ninguém para emprestar os restos da lua. Pensou como eram belas as lendas do mar.

A voz da Black-Cathie, disse o mais novo. A voz dela não era a do vento a cantar. E eu também fecho agora os olhos para a ouvir melhor, por entre as ondas do gigante mar e os troncos negros que passavam a galope como se fossem os cavalos do fim. Fecho os olhos para saber o momento em que o grumete os voltou a abrir e teve à sua frente o verde acordado. O momento, quis dizer o mais velho. O momento em que as ondas desceram como desce o véu de uma noiva a sorrir. Mas só pôde estender a mão para a garrafa de sempre, e o mais novo já não escutava. Sim, meu amigo velho, estende a mão para a garrafa tão perto, sente o seu frio como eu sinto a mão gelada que a Black-Cathie estendeu ao grumete de longe. Bebe calado e deixa-me sentir o véu a escorrer, como se o mar fosse agora a noiva do mundo. Deixa-me saber esta história pelos olhos de lua do grumete e pelos olhos do verde acordado que o beijou.

E o mar há-de ser também um dia a minha noiva acordada, pensou o mais novo, há-de ser a minha noiva viúva. Porque foi no mar que eu nasci, e os corsários me baptizaram em água salgada e em sangue francês que a minha mãe consagrou, bruxa do mar. E eu ainda ouço o grito de guerra dos corsários de negro, ainda ouço o seu oiro a brilhar. Longe agora o equador, longe então os rochedos de Lomond’hir. As terras do sol que brilhava como longe brilhavam só os cabelos nocturnos da Black-Cathie. O vampiro do mar. Sim. Um dia eu hei-de ser as almas mortas.

Dizem, resmungou o velho, dizem tanta coisa e diziam mais os que nem sequer souberam morrer. Dizem que no momento em que o grumete abriu os olhos era música acima das ondas, e no fundo passavam sombras de prata a dançar. E as águas abriram-se na floresta de mastros que eram afinal cruzes guardadas, navios naufragados desde a primeira noite do mar.

Abriu os olhos sim, os olhos feitos de lua roubada e o corpo branco do grumete estava intacto como se a lua o cobrisse. E à sua frente era o manto negro e era a mulher dos cabelos de fogo que parecia ter asas dobradas. E a noite feita maior.

Sorria alto a mulher de luto, e dos seus lábios saíam as palavras geladas, chegaste outra vez. Porque eu o ordenei ao gigante mar, porque eu fiz esta história parar. Ninguém traz ao mar os olhos de lua roubada sem fazer com que tudo esteja perdido, e por isso mais vale fazer de ti flor de carne a esmagar, mais vale espalhar um rio de rosas vermelhas pela inocência do teu corpo tão branco. Olha para mim e sente a minha boca como se as lendas te entrassem no coração. Porque eu sou o vampiro do mar, e o mar nunca soube de uma sede maior.

Mas o grumete olhou a mulher com os seus olhos de lua, e estendeu a mão intacta até lhe tocar os lábios que eram rosas carnudas e os cabelos que eram o fogo mais frio. Tocou-a devagar como há muito tempo a tinham tocado as águas de Lomond'hir e antes delas uns olhos que não sabiam morrer e as sombras que eram um castelo por dentro.

O vampiro do mar, disse o grumete, e as suas palavras eram a prata dos dias. Em ti brilhou já o ouro dos elfos. Em ti andou uma alma a esmagar. Foi por isto que eu lutei com o gigante mar. Foi por isto que houve duas noites e os homens iguais.

Amigo velho, disse o mais novo. Isto não pode continuar.

(continua)

8.6.04

O branco de pedra

Já estou na minha casa nova. Percebi uma coisa já nas suas paredes: o branco só não é deprimente quando está contido pela pedra. Mas é bom voltar a um chão de madeira.

As letras e as músicas

De há uns dias para cá recomecei a ouvir música. Passei meses (um ano?) quase sem ouvir. Fui a um concerto e de vez em quando limpava o pó a um cd, mas pouco mais. Agora ouço várias horas por dia, e isso é bom sinal.

Vantagens: Therion, The Equinox ov the Gods, Tristania (menos). Escrevo mais. A Senhora da Rocha (que é os Therion). Durmo melhor (com a musica). Leio menos jornais. Não tenho de interromper o livro durante o duche. Poupei o Rock in Rio. Não ouvi três rapazinhos a pedir-me tabaco ontem na rua. Talvez seja desta que perceba o que é um "riff". Apercebi-me de que perdi o "Closer".

Desvantagens: Paul McCartney. Não leio quando ouço música. Já gastei dinheiro num novo cd (o último Therion). Tenho de me levantar quando o telefone toca (e está sempre a tocar no meu gabinete). É ridiculo jantar sozinho a ouvir musica. O meu gato não gosta de Equinox. Disseram-me que Sirenia é melhor que Tristania, e que devia ouvir uns austríacos de que não retive o nome. Fiquei com menos tolerância para o "industrial tecno qualquer coisa", mesmo pintado de negro (estou a envelhecer). Uma rapariga com um mapa ia-me perguntar qualquer coisa e desistiu. Arrisco-me a aprender o que é um "riff". Apercebi-me de que perdi o "Closer".


Hard times

Já pareço o outro. A Senhora da Rocha vai continuar, só não sei é quando.

7.6.04

No palácio de meu pai Cassandra me chamaram...



(pintura de Dante Gabriel Rosseti: "Beata Beatrix")

(Parte I)

A Senhora da pintura não é Cassandra a princesa de Troia mas podia ser. Repara bem nos seus olhos porque nunca viste uns olhos tão abertos, a ver tão longe e tão fundo. Parecem cegos aos que não sabem olhar.

No palácio de meu pai Cassandra me chamaram, e era Cassandra a filha de Príamo rei. O rei de Tróia, a dos muros altos. E nunca ninguém tinha visto uma beleza tão pura, uma beleza de roubar. Por ela se enamorou um dia o deus Apolo, o deus da luz de quem é tão difícil aos homens desconfiar. A princesa sabia que para tanta luz não era feita. Mas Apolo concedeu-lhe o dom da visão, em troca da promessa de fidelidade: ver as coisas, e as coisas que há para além das coisas. O dom da profecia, a verdade toda à frente dos olhos. O dom? The curse? É que nos olhos de Cassandra passou a entrar o mundo todo, e para isso deles tinham de sair mais lágrimas do que as que nos seus olhos cabiam. E a princesa suplicou ao deus a libertação.

Há outras coisas, outras lendas. Há a violação de Cassandra por Ajax-o-Grego, a sua morte às mãos de Clitemnestra, a esposa ciumenta. Mas há, principalmente, o resto da história dos seus olhos de cegar: os deuses intimaram Apolo a que a libertasse, mas a luz não gosta de nos largar. E Apolo transformou o presente das núpcias quebradas: Cassandra continuaria a ver, mas o que ela via nunca mais poderia ser dito em palavras que os homens entendessem. Não mais os avisos, os conselhos: apenas por dentro o mundo todo, e por fora esse olhar cego que quase não vês.

E por isso Cassandra, a filha de Príamo Rei, se tornou para os Gregos o símbolo da tragédia maior, que é afinal a vida de cada um de nós: sabemos o que vai acontecer, mas só podemos ver o que acontece.

(Parte II)

Sabemos o que vai acontecer, mas só podemos ver o que acontece. E agora vou falar para a Cathie laBlanche, e vocês os outros todos podem ler mas isto não é para mais ninguém.

Às vezes vemos qualquer coisa à nossa volta, e então dizemos que não há coincidências. Outras vezes sabemos que vai acontecer qualquer coisa mas não sabemos o quê. Sabemos é que é preciso ficar à espera, ficar ali como se isso pudesse ser o combate maior. Calhou de estarmos a olhar com os olhos de dentro. Mas às vezes aqui é muito longe e não sabemos sequer o que acontece.

Agora sei porque me assustaste, e porque é que o branco sabe ser a cor mais terrível. Tem cuidado com a noite que chamas. Tem cuidado porque ela gosta de responder, e aí será tarde para não morar. É cedo para tantos traços, mesmo que sejam feitos pelo luar. Porque a noite mora em todo o lado, mesmo nos sítios onde não anda ninguém. Digo-te eu, que sei do que a noite é feita.

6.6.04

Guerra e paz

Hoje foi um dia inquieto que começou mal e acabou (terá acabado?) como começou. Um dia em que não suporto a presença de pessoas. Lembro-me de andar na rua, por volta do meio-dia (a hora mais difícil) e de me parecer que todos estavam sujos, gritavam e existiam demasiado. Lembro-me com horror de uma viagem de metro (mas porque é que estaria cheio a um sábado?!). Venho agora de um sítio onde era suposto haver uma presença (uma ausência?) diferente, e de onde, pela primeira vez, saí mais cedo (diga-se em verdade que me estava a fazer falta o Luar...).

No meio, momentos bons de sono e de música e de leitura, e uma enorme conversa com uma pessoa que parece ser sempre de muito longe e estar sempre muito perto.

Por várias vezes pensei numa coisa de que não gosto, mas que continuo a sentir: o único critério para avaliar alguém é pensar se gostava de o ter ao meu lado, ou sob meu comando, numa guerra. Na paz morna somos todos parecidos. E isto vem do que vi hoje no meu lugar do início, e aplica-se também ao amor: quem quereria eu abraçar à luz das espadas?

5.6.04

Há cento e dez anos...

Era assim que se diziam as coisas negras em Portugal:

Hálitos de lilás, de violeta e d’opala,
Roxas macerações de dor e d’agonia,
O campo, anoitecendo e adormecendo, exala...
Triste, canta uma voz na síncope do dia:

Alguém de mim se não lembra
Nas terras d’além do mar...
Ó Morte, dava-te a vida,
Se tu lha fosses levar!...


(Guerra Junqueiro)

3.6.04

A Senhora da Rocha (sobre ela, e sobre as Senhoras Negras)

No princípio foi a pintura (e eu até já a tinha tido como screensaver tempos atrás...), e como me acontece sempre andava eu na net à procura de uma outra imagem para outro texto que queria aqui pôr. E de repente aquela mulher outra vez, com ar de quem guarda a noite dentro de si.

Quis trazê-la para a minha Ribeira, sem saber o que fazer com ela. Talvez um título, uma legenda. Uma frase bonita, mas a noite é tão completa que não sabemos pôr-lha mais nada. Lembrei-me de contar o que fazia ela ali, e lembrei-me que eu também não sabia (mas a "Tempestade" que dá nome ao quadro é uma peça de Shakespeare, e ela é Miranda, e a história de Shakespeare era uma história que não me apetecia contar).

E vi, como se visse por entre o fumo, vi ao fundo de mim dois homens sentados a falar. "Eu vi-a como te estou a ver". E aconteceu-me outra vez uma coisa que já não vivia há muito tempo: havia uma música comigo, e os homens sentados olharam para mim como se me convidassem a beber também. Talvez seja por isso que na história eles olham à volta, como se tivessem pena das mesas vazias (e não, eu não sou o homem alto que lhes leva o rum...)

A música que estava comigo é uma das mais bonitas do mundo, e é uma música que eu não sei de mais ninguém que conheça e de mais ninguém que goste: Clavicula Nox, de Therion (o album "The Crowning of Atlantis"). Eu sei dela porque uma vez passei à porta de uma loja onde há cruzes inquietas e coisas feitas de metal e coisas negras que devem ser roupas de princesa, e essa música saía de lá, e eu perguntei a uma mulher alta que vestia de negro inteiro se me podia dizer o que era aquilo e ela olhou-me como se eu ainda não existisse e disse "É Therion" e eu andei dias em silêncio à procura de "Etherion" e não encontrei... Tenho pena de ser tão ignorante, e fiquei feliz quando a encontrei.

Mas eu estava a dizer que há uma coisa que não me acontecia há muito tempo. Escrever, ir escrevendo, sem saber qual vai ser a palavra a seguir, como se fossem as coisas a entrar em mim em vez de ser eu a falar delas. E portanto fui o primeiro a saber que aquela era a Senhora da Rocha mas não fui eu que o quis assim e também não sei como a história vai acabar.

E tudo isto ficou, por estas e outras coisas, nas mãos de Senhoras de Negro, e de homens sombrios porque sombrios devem ser os Therion. Vamos ver se sei dizer mais.

2.6.04

A Senhora da Rocha (II)

...
E então foi a vez de o mais novo olhar à volta, como se contasse ver alguém. Mas as mesas continuavam vazias. E de repente sentiu saudades do mar.

Sim, dizem que o conde a foi encontrar, disse o mais velho. Dizem que naquele dia ela tinha saído muito cedo, ainda o castelo era as brumas por fora e ainda o castelo era as sombras por dentro. E era também o sabor das rosas esmagadas, porque esmagada estava então a alma de Cathie laBlanche.

Um vestido branco cobria-lhe de luto o corpo delgado, e luvas compridas beijavam-lhe as mãos assombrosas. E havia um anel forjado em prata dos elfos, e talvez uma pulseira com dragões, e um colar de pedras finas, vermelhas como o fogo que dentro dela andava. E quando saiu andava mais depressa que a luz que descia do ar, e como as folhas no vento foi andando e andando, sem parar na clareira do bosque e sem parar nas fontes tão frescas, e andou como se não fosse da terra e como se alguém estivesse no fim à sua espera.

E claro que havia alguém à espera de Cathie laBlanche, disse então o mais novo, como se falasse sozinho e como se se fosse levantar. Porque no fim havia a noite e os braços densos da noite, a noite que despe as almas cansadas e que fez dela a Black-Cathie do coração de rocha e dos navios em que tudo está perdido. Mas foi o conde que a encontrou.

E um dia, pensou então, hei-de também seguir a noite das almas cansadas. Talvez quando o mar me quebrar, como se quebraram os navios da Senhora da Rocha. Mas eu hei-de andar sem parar e sem olhar para trás, mesmo ao encontro do frio que espera. E o vento há-de aprender o resto da minha história, e há-de ser uma história grande, uma história de gritar. Porque eu sou o filho da bruxa do mar, e dizem que o mar nunca soube de um fogo maior.

A Cathie andou, continuou o outro, andou até chegar à lagoa escura, ao lago triste de Lomond’hir. Dizem que as suas margens já viram as fadas dançar, e já viram outras coisas que nenhum homem pode saber e continuar de olhos fechados. Dizem que é um lago mais velho que o mar. E em Lomond’hir ela ficou, e de pé olhou as águas, com o seu colar tão vermelho e o seu vestido tão branco, e os braços cruzados no mesmo gesto parado com que agora espera os navios do fim. Ali ficou e fitou as águas, e o que viu nas águas talvez fossem as asas de um corvo ou talvez fosse a sombra de uma cruz descida. Ninguém sabe quanto tempo passou, e dizem que talvez não tenha sido uma noite, mas todos os séculos dos séculos. Mas no instante da última luz abriu os braços como fosse abraçar as trevas e como se o seu coração se partisse. Abriu os braços, e dizem que mesmo o lago velho nunca vira uma beleza tão grande como a sombra branca de morte de Cathie laBlanche, a fada do coração de esmagar.

Ah, mas Cathie laBlanche lhe disse então uma voz atrás dela, e o branco parou como se toda a morte hesitasse. E antes até de ela olhar foi ali o gesto incerto, e uma capa bordada a ouro misturou-se com o branco do vestido branco, e duas mãos fortes seguraram o corpo esguio como se não houvesse mais nada e os olhos do conde eram mais frios que as águas do lago gelado de Lomond’hir. As pedras do colar desfizeram-se nela como se fossem a rosa esmagada. Estava tingido de sangue o pescoço de Cathie, e o sangue dela era outra vez a terra dele, e o verde dos olhos dela dava à sua boca o gosto amargo de beber o último verde do mundo.

E o mais velho olhou com raiva para a garrafa que se tinha acabado. Diabo de mulher, diabo de sede. E esta história está longe de acabar.

Ainda agora começou, respondeu devagar o mais novo, e fingiu não reparar que o outro fazia o gesto de chamar outra vez o homem alto que os servia. Porque todas as histórias se desfazem em nós como se desfazem as pedras finas no sangue de Cathie laBlanche, e é por isso que eu gosto do mar. O sítio onde as histórias não chegam ao fim, mesmo quando tudo está perdido. Bebe, meu amigo velho, bebe outra garrafa para que o rum seja em ti o gosto amargo que também entrou na boca do conde. E conta-me o que disseram as suas mãos, o que sentiu a capa bordada. Continua. Conta-me o que viu o lago velho, na noite em que o branco foi tingido e em que a noite ouviu uma voz atrás dela.

Dizem, respondeu o mais velho, e ficou calado muito tempo. Dizem coisas mas ninguém pode saber o que aconteceu ali. Nem mesmo o capitão Lawrence, o único homem que viu duas vezes o rosto inteiro da Senhora da Rocha, nem mesmo a tua mãe, e o mar nunca soube de um fogo maior que o dela. Sabes como é. Dizem uns que Cathie gritou, e que o lago recolheu o vestido branco como uma vela deitada ao mar. Dizem outros que as águas ferviam, e que nesse instante a torre do castelo se rasgou como se rasgava a carne dela, para que ninguém pudesse ver a caixa vazia que trazia o conde dormido. Dizem que a pele do conde era branca como a neblina da manhã, e que por ela subiram rios de rosas, rios feitos de sangue a esmagar, feitos do coração e da vida de Cathie laBlanche. Dizem que ele a roubou, e que por isso o verde não voltou no mundo a ser o mesmo. Dizem que o pai dela sabia de tudo, e que afinal foi o seu manto que desceu às águas e que ainda hoje se não deve passar no lago velho depois do escuro. Dizem que o conde pronunciou palavras que não são de bocas cristãs, e que essas palavras lhe abriram as feridas do corpo mas lhe sararam na alma a ferida maior. Dizem que no fim os dois ficaram quietos como os primeiros amantes do mundo, e que o sol demorou mais que o costume a encontrar os caminhos de Lomond’hir. Mas ninguém sabe o que realmente aconteceu.

O homem alto trouxera outra garrafa, e nos seus olhos havia uma inquietação vaga, como se aquela conversa não devesse ter nascido ali. Mas o mais novo não fez caso dele.

O branco, disse o mais novo, sabe ser quando quer a cor mais terrível. E quando quer é a nós que nos quer, como se fosse em nós uma canção perfeita. Lembro-me do mar branco das viagens do norte, quando entrámos nas terras do frio, e lembro-me do branco dos mortos na viagem em que a peste andou embarcada. Lembro-me das rosas brancas da ilha sem nome.

(e lembro-me da pele branca da minha mãe, pensou mas não disse nada. Catherine Blake, a bruxa do mar. Era um branco que ardia em mim como ardiam por ela os corações bravos dos corsários. Um dia hei-de ter o meu navio, hei-de cruzar os mares com uma espada de sangue e uma capa bordada a ouro. E o meu navio há-de ter as velas brancas como as terras do frio, e há-de ser de um branco de assustar, e só a minha bandeira e o meu coração serão negros como a alma morta da Senhora da Rocha. E o mar nunca há-de ver um fogo maior.)

E posso imaginar o branco inteiro nas margens de Lomond’hir, continuou. Mas ainda não sei da Senhora da Rocha, e eu pensava que era uma lenda do mar. Falaste-me de um vestido branco e do primeiro sangue e dos amantes que não deixam o sol separá-los, mesmo que seja o ouro dos elfos. No entanto a Black-Cathie usa um vestido negro quando aguarda de pé os nossos navios tão frágeis. Quando manda as histórias chegar ao fim.

A primeira vez, disse o mais velho, e falava mais baixo como se tivesse medo do que ia dizer, o capitão Lawrence era apenas um rapazito.

(continua)

1.6.04

Desde que me lembro que os mais velhos me tentaram corrigir (sem sucesso). Os poucos amigos que juntei ao crescer afastaram-se desiludidos quando acharam que não cresci como eles. A família que resta olha-me como se eu fosse uma história intranquila. Por isso fui sempre buscar abrigo em livros e histórias, porque o que me tinham para dizer era dito sem saber o que eu ia pensar. Foi preciso envelhecer um pouco para descobrir o privilégio de ter amigos mais novos que me olham de frente e estão perto seja eu o que ande sendo.

Por isso os meus amigos de agora são estranhos: acho que para uns sou o amigo mais velho que têm, e esses são os vivos; para outros sou o leitor mais novo que têm, e esses são os mortos.

Fica o mistério profundo dos meus filhos. Gosto deles como se fossem o mundo inteiro. Estão sempre ali, mesmo quando eu ando tão longe. E não me deixam confundir a noite andada com as trevas que nos vigiam.

Links

A Gotika tem razão: vamos lá pôr um link para os blogs de que já falei: então a Salada de letras é aqui e a Keira é aqui. Pronto. Agora já não há desculpas para não ir lá.
(e eu mesmo venho agora de lá, e o que disse de um e outro continua inteirinho. E não pensem que estou a dar-vos caminhos para mundos diferentes. São o mesmo sim, o mundo dos mundos outros à nossa volta, dos mundos maiores dentro de nós. É essa a dolorosa beleza da verdade. E ainda bem.)

A Senhora da Rocha


(pintura de John Waterhouse - A tempestade)



Sim, disse o mais velho. E vi-a como te estou a ver agora, erguida nas rochas como se estivesse à espera, de braços cruzados como se no seu peito calasse uma noite maior. Mas nessa altura já estava tudo perdido.

A Senhora da Rocha, murmurou o mais novo, e estremeceu como se o rum o não tivesse aquecido. O Ferreiro falou-me dela. Pensei que era uma lenda do mar.

O mais velho olhou devagar as mesas vazias, e a sua mão estendeu-se para a garrafa acabada. Não vêem quando um homem tem sede? Quem não entende a sede não merece viver. A Senhora da Rocha sim, e os marujos do Triumphant já lhe chamavam a Black-Cathie quando andava eu na tua idade. Quantos anos tens, rapaz?

Dezasseis pelo São Lourenço, pensou o mais novo. Vinte, disse muito depressa. E pegou no copo vazio como se beber fosse coisa de grandes.

Vinte, repetiu o mais velho... Assim moço eu era quando me embarquei nesse navio embruxado, e o capitão Lawrence que Deus tenha era talvez o único que a tinha sabido ver duas vezes com aqueles olhos que pareciam luas. Havia um homem em Veneza que tinha dado a terra depois de a Cathie lá estar, mas nunca teve alma de voltar ao mar e andava com os padres na festa de San Zanipolo...

Mas quem é a Black-Cathie, perguntou o mais novo, e estremeceu um pouco. Quem era antes de estar ali nos rochedos, ali como se fizesse a noite maior. Uma alma que ficou no mar. Porque ela aparecia quando tudo estava perdido.

O mais velho puxou a garrafa aberta que o homem alto tinha vindo trazer. Encheu os copos e ficou a ver o líquido como se nele lesse a história que ia contar. E hesitou, porque os homens do mar não gostam de falar disto depois de a lua se erguer.

Dizem que a Black-Cathie era a filha do dono de um castelo que ficava atrás dos rochedos, e que era linda como as rosas vermelhas que todas as manhãs lhe enfeitavam o quarto, linda como os amores. E de amores perdeu-se um dia por um estrangeiro que o pai recebeu, um homem vindo de montanhas longe que diziam que era conde e diziam que não sabia morrer. Cathie laBlanche se chamava então, e desde que chegou o estrangeiro não teve olhos para mais ninguém, e todos os dias dava ordens para que trouxessem mais rosas e todos os dias saía sozinha e passeava pelos bosques e ia até à lagoa de Lomond'hir como se soubesse que o havia de ver. Diabo de mulher.

O mais novo endireitou-se, e os seus olhos brilhavam de rum e brilhavam também de coisas que não tinham nome. Cathie laBlanche. Um dia também hei-de chegar de longe, pensou. Hei-de chegar numa carruagem negra e hei-de levar uma capa bordada e à minha espera hão-de estar uma mulher e as rosas, rosas vermelhas que parecem feitas de carne a esmagar.

E o conde encontrou-a, disse ele de repente, como se a bebida lhe tivesse dado voz e como se tivesse já contado aquela história noutras noites iguais. O conde encontrou-a numa noite em que o nevoeiro desceu mais cedo e em que a Blanche não pensava em voltar. Pensava nas rosas, e pensava na lagoa negra lá em baixo, e no castelo frio em que a noite era uma noite por dentro. Pensava em carne a esmagar.

E foi a vez de o velho estremecer.

Razão tinha o maltês, diabo de moço. És bem o filho da bruxa do mar. Disse, e olhou o mais novo como se nos seus olhos abertos estivesse ainda o cabelo ruivo da mulher que acompanhara os corsários e que os chegara a comandar quando tinham vindo os franceses de Trinidad e nem um só voltou à France maldita. A bruxa do mar.

Diabo de moço, repetiu. Topou-a sim o conde, e topou-a quando a Cathie tinha já deixado murchar as rosas do quarto e dizem até que o espelho grande se quebrara e nem uma só vez os seus olhos se tinham cruzado. O conde não falava as línguas cristãs, e fechava-se com o dono do castelo nas caves fundas e deus sabe o que lá sucedia. Dizem que uma vez os viram à noite a levar uma caixa grande, e diziam que era ouro do mais puro e que o tinham ido a enterrar, mas diziam também que a caixa grande estava vazia e que de dia ninguém tinha ordem de subir à torre e nesse ano dois carneiros apareceram degolados junto à cruz grande e o filho mais novo do pastor sumiu e não souberam mais dele.

(continua)