30.6.04

The fallen one



Tenho comigo uma canção que me embala, e que gostava de poder pôr agora aqui com as imagens e as palavras. Na última faixa de um álbum cheio de hinos guerreiros como é próprio do power metal dos HammerFall, o grito das guitarras para o que foi ferido de morte: the fallen one.

So many things that I wanted to say forever left untold... all I can do is cry, save a little prayer for the fallen one...

Tenho comigo uma canção, e tenho tido comigo nestes dias estranhos uma tristeza funda que mais parece ferida a reabrir. Mais do que morrer, pesa em mim a morte do mundo. Não, as vossas cores já não lhe dão vida. Não, os vossos risos já não o despertam. Não, as vossas bandeiras já não sabem cantar. E cada palavra que se acrescenta é mais uma pedra que fere, e cada flor é mais um veneno que dói, e cada gesto de amor é mais uma traição que desfaz.

Tenho comigo uma canção, e tenho comigo o silêncio de todos os barcos naufragados. Tinha preferido não ter olhos e não ter alma que neles se espelhasse. Tinha preferido que no mundo não houvesse livros, nem estátuas, nem igrejas, nem rosas bravas. Tinha preferido não ter chegado tão longe, sempre tão perto de sítio nenhum. Mas agora é tarde, muito tarde, tarde demais.

Tenho comigo uma canção, e tenho comigo guardados os tesouros de todos os impérios apodrecidos. Tinha preferido não ter sabido o que nós homens podíamos ter sido, o que nós homens nunca viremos a ser. Não ter sentido a grandeza tão frágil. Tinha sido mais fácil se as minhas mãos nunca se tivessem rasgado na pedra lavrada, se o coração não tivesse querido abraçar o mundo todo.

Tenho comigo uma canção, mas a morte é sempre um acto solitário. E tantas, tantas coisas para dizer. A ti ensinaram que o mundo anda contente, que com mais uma cor e uma palavra e um sonho de amores-perfeitos as coisas irão andando e tu com sorte andarás com elas. Eu preferia que cavalgasses por aquele céu ensanguentado. Porque se ficares onde nasceste talvez vivas mais, mas não verás crescer à tua volta a sombra maior.

Sabes, as únicas coisas que importam são o sangue e as velhas canções e os barcos no mar e as rosas mortas. As únicas coisas que vale a pena dizer são aquelas que não consegues calar. As únicas coisas dignas de ti são as que edificarem uma nobreza nova frente aos mundos que vão morrer. Forja em ti uma alma que te deixe ser inteiro como inteiros são os poemas e os animais. Combate pelo mundo, enquanto o mundo durar.

Deus sabe que eu tentei. Mas a espada caiu-me das mãos. E agora tenho comigo uma canção, e tenho em mim o cheiro da morte matada. Estou cansado, muito cansado. Mais uma vez não sei chorar. Saberias tu cantar a vida que eu podia ter tido? Saberias rezar pelos caídos?

[.....]

Como antigamente, no regaço amado,
(Venho morto, morto!...) deixa-me deitar!
Ai, o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...

Canta-me cantigas, manso, muito manso...
Tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
Que a minh'alma durma, tenha paz, descanso,
Quando a Morte, em breve, ma vier buscar!...

(versos: Guerra Junqueiro, regresso ao lar, do livro Os Simples;
pintura: Andrew Vicari, La veillée du soleil)