19.9.07

A Casa das Belas Artes



Há no Largo das Belas Artes uma casa grande fechada, como se estivesse à espera de que a fossem buscar. É uma casa antiga com muitas janelas, daquelas que foram feitas quando as histórias ainda não tinham chegado ao fim. Está abandonada há muitos anos. Tenho a certeza de que não quer ser um condominio de luxo. Tenho a certeza de que gosta mais do Inverno, que se sente incomodada quando em Agosto aquilo se enche de turistas e de espanhóis a falar alto. Há no Largo das Belas Artes uma casa que é igual a mim.

Gostava de poder ir buscá-la. Gostava de ter um bar, e de ter um alfarrabista, eram duas coisas que me fariam feliz. Talvez os livros pudessem ficar na cave, haveria uma porta pequena e pouca gente saberia dele para me não comprarem os livros todos. Talvez o bar pudesse ficar no primeiro andar.

Gostava de ter um bar, e não sei nada de música e não sei nada de bebidas a não ser que gosto de cerveja e de bebidas feitas de absinto. Mas haveria pessoas para fazer essas coisas bem. Talvez precisasse de um espaço muito grande, embora aquilo nunca fosse um lugar para muita gente. Mas eu gosto de espaços grandes. O bar seria como chegar à sala e ver pessoas que estariam sempre lá. Precisaria de ter mesas grandes feitas de madeira antiga, próprias para grandes noites de cerveja e risos e ir dançar quando houvesse Sisters (e Sisters haveria sempre). Precisaria de cantos, de lugares mais sombrios, de mesas pequenas e de lugares para estar sem fazer mais nada. Talvez ao balcão devesse estar um senhor igual ao Bela Lugosi, talvez uma menina saída de um filme da Sophia Coppola, virgem suicida que quisesse trabalhar pela noite dentro.

Pessoas iriam ver livros, pessoas passariam no bar. Não todas, claro, aos olhos de muitos a casa continuaria a ser uma casa que era uma pena não ser um condomínio de luxo, faziam-se ali quatro milhões. E eu conheço na Câmara os arquitectos certos. Não, nem todas as pessoas dariam por ela. Não seria preciso dizer "desculpe mas esse livro não é para si, vá antes comprar uma revista qualquer". Não seria preciso dizer "estamos fechados, vê aqui alguém com vontade de se abrir? Vá beber a sua caipirinha para um sitio onde haja gente tão feia como o seu coração". Não seria preciso dizer quase nada.

A música seria sempre a música certa, e ninguém perceberia como podia ser a música certa para várias pessoas ao mesmo tempo, escolhi bem o DJ não foi? Estou muito feliz.

(ah, pois. Os livros iam chegando ao alfarrabista como se fossem pássaros a bater na janela, os livros todo que eu sempre quis ler, o livro que alguém procurou. O bar teria uma coisa estranha, a toda a hora seriam lá duas e meia da manhã, fosse qual fosse a hora do dia cá fora. Sempre haveria alguém a dançar, sombras negras ao fundo da sala. Sempre haveria uma mulher que ainda há pouco foi beijada. Sempre haveria alguém calado do lado esquerdo do balcão. Mas o Bela Lugosi tem estranhos poderes, dizem que os verdadeiros vampiros também passam lá misturados)

Em cima, claro, uma casa minha. Só se chega lá por uma porta sempre fechada à chave, é preciso subir uma escada em caracol (a Casa das Belas Artes tem imensos corredores e escadas em caracol e até há um lugar onde se vê de vez em quando uma mulher de branco com um candelabro na mão, e não há porta por onde ela pudesse ter saído...) Não sei onde poria o mordomo, mas ele havia de encontrar uma solução. E também só o usaria para saber que chegou uma carta, para ele me lembrar que na quinta feira chegariam os hóspedes de longe, e que tudo estava já tratado. Seria uma casa estranha, eu divido-me e na Casa das Belas Artes teria finalmente espaço para mim. Queria um quarto que fosse como uma tenda de um emir do deserto, um quarto que fosse como o de um monge russo. Queria uma sala despida com grandes quadros do Rothko na parede e um sofá interminável. e uma sala com peças compradas em leilões, pinturas românticas de castelos alemães e de mares ingleses e mesas feitas para a prata antiga brilhar. Queria um quarto onde nunca entrasse, para saber que me faltava fazer ainda uma coisa. Uma cozinha com fruta e queijo e vinho e pão.

A Casa das Belas Artes havia de ser uma casa igual a mim, eu uma coisa igual a ela. Ao longe o Tejo, tão cansado.


[escrito em Setembro de 2005, publicado num grupo privado]

13.9.07

Moonchild


§ 1

Rasteira condição de Agosto, asfixia do Verão, que tenho eu que ver convosco? Passai como se vos não tivesse sabido, passai à chuva que eu hei-de ter. E veio a chuva, entardecer dos mundos, veio por fim a ternura grande das águas. Setembro. Não sei sentir nos subsolos do Sol.

§ 2

Li agora a notícia de que a solidão se guarda nos genes. Guardar sei eu o que seja - guardo e aguardo. E diz o cientista, ou o jornalista que o resume: "É como se a solidão fosse uma molécula ou deixasse uma impressão digital no organismo". E cita um estudo, uma revista, um teste, uma explicação: "as pessoas mais isoladas tinham 78 genes mais activos e 131 com menor expressão, o que reforçou a tese de uma alteração molecular nos indivíduos numa situação de solidão crónica."


Junto à notícia vinha uma imagem (não era esta), vulto negro em companhia do mar. E a legenda, "vítimas da solidão". Tão estranho o mundo em que estamos, não é? Eu teria dito outra coisa: "alteração molecular em indivíduos numa situação de companhia crónica". "Vítimas da multidão". Mas não quero falar aqui das marés negras.

§ 3

Penso que se chamasse Inês, ou Susana (alguma vez o saberei?). Devia ter vinte anos e vivia muito longe daqui, nas minhas terras do norte e da chuva e dos montes que viram as fogueiras dos brácaros, as espadas frias dos gróvios. Terras de Santa Maria Pagã. Devia ter vinte anos, e Camões o poeta ainda era vivo quando ela nasceu.

Nasceu e cresceu e casou: Francisco. De amores não sei. O marido era o meirinho daquela vila, o que quer dizer o oficial da justiça do rei, o homem que citava os homens para virem aos juízes, que prendia os corpos e penhorava os bens. A vara do meirinho era uma das varas do poder. Francisco, nome tão certo para um homem assim. E vinte anos tinha ela talvez, às vezes fecho os olhos para a saber de manhã cedo a atravessar a praça, a caminho da missa no Convento de Santa Maria, ao longe as torres de Salvaterra que eram já do poder d'el rei de Espanha rei novo de Portugal. Mas é difícil ver mais que a sombra na pedra vã, que os sinos. É difícil ver se alguma vez pensou na última lua.

Penso que se chamasse Susana sim (era o nome da avó), mas Inês é a palavra apagada que se adivinha no que resta de um livro velho. Será o nome dela? Será, será, que Inês é nome de quem vai morrer. E morrer teve ela das mãos da vara.

De amores não sei, nem de outras coisas. Há uma carta do rei: "Faço saber a todos os que este alvará virem...", e depois diz: "Francisco, que anda ausente por matar sua mulher." Mas não diz o nome dela, nem se eram finos os seus pulsos, se voltava alegre da missa de Santa Maria. Se alguma vez dançou em Salvaterra do Minho. Não diz as coisas que eu queria saber. Se eu fosse rei também as não diria.

Companhia, solidão? Somos todos a Inês apagada, Susana das pedras somos todos nós: ninguém sabe nada, nem o nosso nome por ter. E a vara do meirinho justiça do Rei, sinos doces de Santa Maria: vem comigo além-rio, há hoje arraial em Salvaterra-dos-Homens. Vem comigo à sombra da lua do fim.

Não sei o que aconteceu ao Francisco. Um homem com o mesmo nome terá morrido em Lisboa muitos anos depois. Um por um morreram-lhe a ela os sete irmãos (de um deles descendo eu). Passaram quatrocentos e quinze anos, envelheceu o livro que guardou o nome dela. Ainda lá estão os montes que viram a espada e a dança. Companhia, solidão. Julgo que mais ninguém no mundo sabe hoje que ninguém sabe já a história dela. Guardo e aguardo, não é? Os homens vão embora, e as pedras choram, e depois há os contadores de histórias. Que eu não te deixo ficar sozinha.

[a pintura é do meu Caspar David Friedrich. a notícia estava publicada no Público online de hoje. a história é verdadeira. Agosto passou.]