13.9.07

Moonchild


§ 1

Rasteira condição de Agosto, asfixia do Verão, que tenho eu que ver convosco? Passai como se vos não tivesse sabido, passai à chuva que eu hei-de ter. E veio a chuva, entardecer dos mundos, veio por fim a ternura grande das águas. Setembro. Não sei sentir nos subsolos do Sol.

§ 2

Li agora a notícia de que a solidão se guarda nos genes. Guardar sei eu o que seja - guardo e aguardo. E diz o cientista, ou o jornalista que o resume: "É como se a solidão fosse uma molécula ou deixasse uma impressão digital no organismo". E cita um estudo, uma revista, um teste, uma explicação: "as pessoas mais isoladas tinham 78 genes mais activos e 131 com menor expressão, o que reforçou a tese de uma alteração molecular nos indivíduos numa situação de solidão crónica."


Junto à notícia vinha uma imagem (não era esta), vulto negro em companhia do mar. E a legenda, "vítimas da solidão". Tão estranho o mundo em que estamos, não é? Eu teria dito outra coisa: "alteração molecular em indivíduos numa situação de companhia crónica". "Vítimas da multidão". Mas não quero falar aqui das marés negras.

§ 3

Penso que se chamasse Inês, ou Susana (alguma vez o saberei?). Devia ter vinte anos e vivia muito longe daqui, nas minhas terras do norte e da chuva e dos montes que viram as fogueiras dos brácaros, as espadas frias dos gróvios. Terras de Santa Maria Pagã. Devia ter vinte anos, e Camões o poeta ainda era vivo quando ela nasceu.

Nasceu e cresceu e casou: Francisco. De amores não sei. O marido era o meirinho daquela vila, o que quer dizer o oficial da justiça do rei, o homem que citava os homens para virem aos juízes, que prendia os corpos e penhorava os bens. A vara do meirinho era uma das varas do poder. Francisco, nome tão certo para um homem assim. E vinte anos tinha ela talvez, às vezes fecho os olhos para a saber de manhã cedo a atravessar a praça, a caminho da missa no Convento de Santa Maria, ao longe as torres de Salvaterra que eram já do poder d'el rei de Espanha rei novo de Portugal. Mas é difícil ver mais que a sombra na pedra vã, que os sinos. É difícil ver se alguma vez pensou na última lua.

Penso que se chamasse Susana sim (era o nome da avó), mas Inês é a palavra apagada que se adivinha no que resta de um livro velho. Será o nome dela? Será, será, que Inês é nome de quem vai morrer. E morrer teve ela das mãos da vara.

De amores não sei, nem de outras coisas. Há uma carta do rei: "Faço saber a todos os que este alvará virem...", e depois diz: "Francisco, que anda ausente por matar sua mulher." Mas não diz o nome dela, nem se eram finos os seus pulsos, se voltava alegre da missa de Santa Maria. Se alguma vez dançou em Salvaterra do Minho. Não diz as coisas que eu queria saber. Se eu fosse rei também as não diria.

Companhia, solidão? Somos todos a Inês apagada, Susana das pedras somos todos nós: ninguém sabe nada, nem o nosso nome por ter. E a vara do meirinho justiça do Rei, sinos doces de Santa Maria: vem comigo além-rio, há hoje arraial em Salvaterra-dos-Homens. Vem comigo à sombra da lua do fim.

Não sei o que aconteceu ao Francisco. Um homem com o mesmo nome terá morrido em Lisboa muitos anos depois. Um por um morreram-lhe a ela os sete irmãos (de um deles descendo eu). Passaram quatrocentos e quinze anos, envelheceu o livro que guardou o nome dela. Ainda lá estão os montes que viram a espada e a dança. Companhia, solidão. Julgo que mais ninguém no mundo sabe hoje que ninguém sabe já a história dela. Guardo e aguardo, não é? Os homens vão embora, e as pedras choram, e depois há os contadores de histórias. Que eu não te deixo ficar sozinha.

[a pintura é do meu Caspar David Friedrich. a notícia estava publicada no Público online de hoje. a história é verdadeira. Agosto passou.]

2 Comments:

Blogger Fata Morgana said...

Setembro, sim, é o mês do Outono e a chuva já traz um cheiro tão diferente daquele das chuvas de Verão.

Hei-de ir ao Jardim Botânico num dia de chuva, andar por lá umas horas. Depois, quando chegar a casa, hei-de pousar numa cadeira os tesouros que trouxer nos bolsos. E, perante tão extravagante espécie de riqueza, sei que vou rir, porque as pessoas muito práticas que vivem no mundo de hoje só poderão achar-me doida.

Não me hei-de sentir só - apesar de ser muito provável que tenha, há muito tempo, a solidão guardada nos genes.

E também não vou olhar para o Público online, fico com a tua versão, claro.

14/9/07 01:19  
Anonymous Anónimo said...

Agosto passou, finalmente.

Musgo

14/9/07 14:20  

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