As coisas todas tinham uma presença calada, e por isso nunca me sentia sem ninguém. No corredor grande, as jarras verdes tinham por mim um desprezo altivo (preciosidades, dizia a minha avó, diz o tio que são preciosidades; mas havias de ver a casa da prima Ilda, a casa da prima Carmo), e o espelho grande assustava-me com a sua moldura de pássaros pretos e o baú que guardava bonecas de loiça e braços soltos de bonecas (da tia Clara, contava-me a avó, quase todas da tia Clara, vieram do Brasil de barco). Outras coisas eram mais próximas, mais fáceis: a lareira em tijolo, o relógio inglês, os amarelos mosaicos da copa.
O mundo tinha coisas, de vez em quando um crescido falava-me. Menos a Maria José, que se ria alto e me pegava ao colo e tinha uma camisola cor de laranja e o cabelo preso atrás. Mas a Maria José um dia desapareceu (um dia em que a avó ficou com muitas dores de cabeça); e só muito depois soube que engravidara do José Moreno. Nessa altura lembrei-me de que a Ana Cozinheira dizia que a rapariga era um alho chocho, e não gostava de me ver ao colo dela.
Por trás do pássaros pretos guardava-se a chave da porta do jardim. Por trás dos pássaros pretos guardavam-se os segredos de crescer.
2 Comments:
Belo texto!
Não andes tão intermitente... é bom ler-te.
Abraço.
Olá Milorde :)
Estou numa fase intermutante. Abraço.
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