24.4.08

Necrosofia


"Os mortos olharam com desprezo e disseram:
- Pára de nos falar de deuses, de demónios e de almas.
Sabemos há muito a essência de todas essas coisas"

Carl Gustav Jung
Sete Sermões aos Mortos

Por alguma razão os mortos
calam.

1.4.08

Abril


O Bobo. O Joker. O Arlequim. O Espantalho. O Pierrot. O Pinóquio.

Quando era criança tinha medo de muitas coisas, medo de bruxas e de demónios, de fantasmas e de mortos, da noite e do mar. Quando era muito pequeno fechava à chave a porta do quarto à noite porque achava que o Leão assim não ia conseguir entrar. Passava a correr as páginas do meu Gato das Botas com medo de encontrar o desenho do Gigante, o desenho do Gato a comer o Gigante transformado em Rato.

Mas agora à distância como esses medos eram doces comparados com o Bobo ou o Joker ou Arlequim. O medo do Leão fazia-me só fechar os olhos, e com os olhos fechados o Leão tinha-se ido embora. Mas dentro de mim a Cara Branca continuava a sorrir quando me lembrava dela.

Não sei porquê esse medo, não sei porque é que o Pinóquio me metia um medo igual. Cresci. Já vi mortos e já vi fantasmas, já tive medo da noite no mar. Descobri que medo é principalmente o medo de nós mesmos. Mas ainda não gosto de olhar a Máscara. Troco o Espantalho por todas as bruxas do mundo, todos os dragões. Mas a Máscara, só a posso comparar com o horror frio das aranhas.

Talvez seja o riso, sabes? Talvez seja a loucura. Num mundo normal há leões e lobos e cavalos e casas, talvez haja mesmo os fantasmas que já vi e os que me aguardam na próxima rua, na próxima noite tão grande. E há loucos virados para dentro, que ficam sentados e calam-se a olhar e não dizem nada porque neles o Abismo transbordou como uma taça de águas mortas. Mas não há, não pode haver, esta loucura revirada, esta loucura serena e surda, cega e triunfante. Não pode haver o riso das trevas.

Talvez seja a inversão da ordem das coisas, porque no mundo que eu sou as coisas têm a sua ordem mesmo que sejam coisas más. Tudo vai parar à Grande Mãe, sabes, mas demorava muito tempo a explicar. Tudo. Talvez eu não tenha crescido ou nunca tenha sido uma criança pequena. Talvez o Joker seja o espelho de não sei que mundo terrível, o Pinóquio o espelho de não sei que tremendo deus. E eu fui sempre o Espelho dos Vampiros, que reflecte sem reflectir.

Ah, e também não gosto de palhaços, deve ser a mesma razão, a mesma rasa razão.

A minha Mãe levava-me ao Circo.

[a imagem é de Alfredo Palmero]