13.10.06

As asas inúteis

Para Monseigneur, Lorde of Erewhon


Foi a primeira noite, a primeira. Foi a noite daquele fim que se fez começo de tudo, depois da vergonha e das cinzas. Angústia interminável do bronze! O silêncio rasgado pela voz enorme, e a descida terrível dos que responderam ao apelo: agrupados em torno da espada flamejante. Foi a presença da noite, as armas apontadas aos príncipes da véspera.

Na primeira noite os anjos, e a dilacerante anunciação dos anjos: dez mil asas atordoaram o céu, o ouro primordial degradado em vermelho e azul (as cores insaciáveis). À sua passagem curvavam-se as flores espantosas. E crescia o deserto, e a sufocante indiferença do deserto. Dez mil vezes a noite iluminou-se e lhes mostrou brevemente a sombra projectada: treva antecipada dos seus passos. Em volta o vento levantado, e a primeira bruma ocultou o lago de águas calmas.

Parto assombroso do mundo: a primeira noite.

No gesto demorado da espada flamejante, pela proclamação dos querubins: para sempre a dor e a incerteza. E a reacção dos cavalos! Derradeira prece antes do mergulho aflitivo (restauração inconsciente da inocência), e logo as asas majestosas oferecidas para redimir a terra castigada. Fidelidade do bronze! Que enquanto o exílio durasse pudessem ser companheiros dos proscritos... que enquanto os homens vagueassem não haveriam de ficar asas ao seu lado, mas só o tropel que iguala a tempestade, o dorso firme que a transporta.

Os querubins aceitaram o sacrifício dos cavalos.

Por isso os cavalos perderam as suas asas magníficas... Mas o que não conta essa história é que as asas oferecidas não chegaram a subir com os anjos da estranheza.

Porque quando os querubins regressaram aos céus inacessíveis, quando as dominações voaram sem um derradeiro gesto para a terra baça, houve um que se voltou, como se as asas hesitassem. Ressonância do bronze! Antes de subir de novo deixou cair as asas oferecidas, embrulhadas nas suas próprias, e o vento recolheu-as: asas estranhas que ficaram ao alcance dos homens. E quando as lágrimas pousaram, a noite entregou-nos a música que ensina a voar, que faz de quem a sente anjo emprestado... Mas eram amargas as alturas? Pois doutras vezes sabemos pela música que os anjos não estão connosco.

Quem eras tu, o anjo estranho? Talvez um anjo caído nos tenha afinal deixado as suas asas inúteis. Quando inconscientes as vestimos (distância irredutível do bronze...) voamos por um momento breve, mas só para mergulhar na mais terrível saudade, uma saudade primordial que não foi feita para caber no coração dos homens: saudade que só pode ter nascido naqueles que ficaram para sempre separados, que fala da dor de ter sido conhecido, de ter sido amado, de não poder voar ao menos uma outra vez.

Anjo de não poder, para que nos deixaste as tuas asas inúteis? Para chamarmos, ao tocar, a atenção de Deus? Para procurarmos o caminho incerto do regresso, a passagem secreta desconhecida até da espada flamejante? Talvez quisesses mostrar que tudo foi em vão, que nunca saberíamos voar mesmo que asas tivéssemos: desforra de um anjo despeitado.

Anjo de não ficar, estarás escondido, a rir-te, em vingança amarga e tão inútil como te eram já naquela noite as asas? Ou talvez te demores, incerto, a escutar-nos do fundo da tua noite eterna: arcanjo deserdado que abraça, para além da ingratidão da terra, o lamento verdadeiro do bronze.

[imagem: a expulsão do Paraíso, de Franz von Stuck]

11.10.06

Le Theatre des Vampires







A moda de Paris e Londres (Inverno 2006) descobriu o "gótico". Honni soit qui mal y pense.

(Casas: Alexander McQueen, Givenchy, Stella McCartney e Gareth Pugh)