Foi a primeira noite, a primeira. Foi a noite daquele fim que se fez começo de tudo, depois da vergonha e das cinzas. Angústia interminável do bronze! O silêncio rasgado pela voz enorme, e a descida terrível dos que responderam ao apelo: agrupados em torno da espada flamejante. Foi a presença da noite, as armas apontadas aos príncipes da véspera.
Na primeira noite os anjos, e a dilacerante anunciação dos anjos: dez mil asas atordoaram o céu, o ouro primordial degradado em vermelho e azul (as cores insaciáveis). À sua passagem curvavam-se as flores espantosas. E crescia o deserto, e a sufocante indiferença do deserto. Dez mil vezes a noite iluminou-se e lhes mostrou brevemente a sombra projectada: treva antecipada dos seus passos. Em volta o vento levantado, e a primeira bruma ocultou o lago de águas calmas.
Parto assombroso do mundo: a primeira noite.
No gesto demorado da espada flamejante, pela proclamação dos querubins: para sempre a dor e a incerteza. E a reacção dos cavalos! Derradeira prece antes do mergulho aflitivo (restauração inconsciente da inocência), e logo as asas majestosas oferecidas para redimir a terra castigada. Fidelidade do bronze! Que enquanto o exílio durasse pudessem ser companheiros dos proscritos... que enquanto os homens vagueassem não haveriam de ficar asas ao seu lado, mas só o tropel que iguala a tempestade, o dorso firme que a transporta.
Os querubins aceitaram o sacrifício dos cavalos.
Por isso os cavalos perderam as suas asas magníficas... Mas o que não conta essa história é que as asas oferecidas não chegaram a subir com os anjos da estranheza.
Porque quando os querubins regressaram aos céus inacessíveis, quando as dominações voaram sem um derradeiro gesto para a terra baça, houve um que se voltou, como se as asas hesitassem. Ressonância do bronze! Antes de subir de novo deixou cair as asas oferecidas, embrulhadas nas suas próprias, e o vento recolheu-as: asas estranhas que ficaram ao alcance dos homens. E quando as lágrimas pousaram, a noite entregou-nos a música que ensina a voar, que faz de quem a sente anjo emprestado... Mas eram amargas as alturas? Pois doutras vezes sabemos pela música que os anjos não estão connosco.
Quem eras tu, o anjo estranho? Talvez um anjo caído nos tenha afinal deixado as suas asas inúteis. Quando inconscientes as vestimos (distância irredutível do bronze...) voamos por um momento breve, mas só para mergulhar na mais terrível saudade, uma saudade primordial que não foi feita para caber no coração dos homens: saudade que só pode ter nascido naqueles que ficaram para sempre separados, que fala da dor de ter sido conhecido, de ter sido amado, de não poder voar ao menos uma outra vez.
Anjo de não poder, para que nos deixaste as tuas asas inúteis? Para chamarmos, ao tocar, a atenção de Deus? Para procurarmos o caminho incerto do regresso, a passagem secreta desconhecida até da espada flamejante? Talvez quisesses mostrar que tudo foi em vão, que nunca saberíamos voar mesmo que asas tivéssemos: desforra de um anjo despeitado.
Anjo de não ficar, estarás escondido, a rir-te, em vingança amarga e tão inútil como te eram já naquela noite as asas? Ou talvez te demores, incerto, a escutar-nos do fundo da tua noite eterna: arcanjo deserdado que abraça, para além da ingratidão da terra, o lamento verdadeiro do bronze.
[imagem: a expulsão do Paraíso, de Franz von Stuck]
14 Comments:
:)
...tão cá dentro!...
Eu? :/
P. S. Voltarei, Frater...
Caríssimo Goldmundo... tu gostas de Anjos porque glorificam o mundo e acrescentam um princípio de esperança e de sonho ao coração dos homens...
Pensemos nos Anjos... não somente como gravuras da teologia... mas como modelos éticos e ontoteleológicos. «Ser» o Anjo, agora. E «ser» o Anjo, no Fim.
Por estes espaços blogosféricos se passeiam gentes que gostam de anjos, etc, uns dizem-se «góticos», outros «cristãos», outros só andam à procura de um pouco de atenção, outros são tão enrolados para dentro e cegos de si que encontraram um meio complexo (blog) para resolver uma questão simples (sexo). Enfim, a Humanidade.
A Humanidade grita desde o Princípio... por vezes os Anjos respondem... e enquanto se calam... Profetas, Filósofos, Poetas e outros tentam ser o espelho dos Anjos... e falar na Sua ausência e no Seu silêncio.
«Ser» O Espelho é mais dor que «ser» A Cruz. Porque o Cristo gosta de brincar nas festas dos Homens e Lhes faz companhia no Pão, no Vinho e na Boda.
Não é assim O Anjo. Por isso, os Seus Filhos são o Seu Espelho. Não celebram com os Homens, não partilham da sua Boda e do seu Vinho e Pão, não acordam nos seus Leitos.
Passam... são como o brilho eléctrico das tormentas... e sabemos que são reais... e pressentimos «aquele não é como eu»... Como é possível? Que não trema perante aquilo que me faz tremer? Que não deseje o que eu deseje? Que seja mais forte do que a soma poderosa das minhas fraquezas?
Anjos...
Tu gostas de Anjos porque glorificam o mundo e acrescentam um princípio de esperança e sonho ao coração dos homens...
Eu vejo Anjos... porque Existem.
Abraço, Goldmundo.
[ o meu pequeno contributo para a tua conversão... se é que ainda é possível... :)= ]
Dimmu Borgir, «Angel's Decay» (original de Samael)
http://download.yousendit.com/FBEA27902F39CA0A
Crematory, «The Fallen»
http://download.yousendit.com/301D58625496FAD8
The Empire Hideous, «Heaven Raining Bullets»
http://download.yousendit.com/FC82492019F9472E
Ou talvez aprendamos o fracasso da nostalgia. Talvez sejamos livres, quando nem raiva nem melancolia nos tolherem, nenhuma beleza distante e contemplada, entrevista. Talvez seja isso.
Bom dia.
Há momentos em que os sentimos junto de nós e outros, perguntamo-nos porque se afastaram...ou será que não os sentimos???
Abração Gold!
Ai, as saudades das tuas visitas ao confessionário... quando colocavas tudo em causa...
Um abraço grande para ti, amigo.
um dos anjos tem celulite!!! hi hi hi
O gótico só faz mal a este moço! :)
asas inúteis. texto inútil. autor inútil. suprema inutilidade?
ou talvez as asas tenham ficado, como memória de um voo.ou talvez sejam a nossa capacidade de sonhar.
um abraço grande, goldmundo.
não tenho deixado comentários, mas passo por aqui muitas vezes. a tua ribeira fica no meu caminho. :)
Sublime inutilidade.
A utilidade é a redução das coisas ao seu uso. Pobre positivismo :P
Abraço, maister.
ora, ora, viktor, estiveste mesmo bem!!!!!
(ao seu uso e ao seu fuso)
abraço
vá lá escreve!!! Eu estou aqui...
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