29.6.05

Igreja de S. Nicolau, baixa de Lisboa, fim da tarde. A porta aberta resguardada por um reposteiro encarnado, degraus de pedra gastos e entrou. AO seu lado de repente estava uma rapariga a chorar. E ele queria ter olhado para a cruz ao fundo, talvez deixar que as coisas do dia serenassem, um bocadinho cansado e o calor, sabes? Apetecia-lhe parar. Mas estava ela mesmo ao lado, a mão direita pousada no Senhor dos Passos como se não tivesse mais onde se agarrar, e as lágrimas caiam-lhe devagarinho como se a não quisessem incomodar mais.

Talvez tivesse vinte anos. Vestia-se como se tivesse todas as coisas do mundo, lembro-me de vermelho e de botas pretas e um anel na mão (o gesto de o repor de manhã nos dedos finos). Lembro-me do cabelo comprido apanhado atrás. Acendeu uma vela como se a vela fosse tudo, e olhou à volta como se não soubesse onde a deixar.

Ele esqueceu-se de se sentar no banco pálido, de fazer o sinal da cruz, de erguer o olhar para o Pai que devia estar no céu como de costume. Esqueceu-se de não olhar para ela. Por um instante sentiu vergonha. Deu um passo em frente, como se fosse ter com ela para dizer "que tens, conta. talvez possamos fazer alguma coisa. talvez possamos falar, ou acender outra vela para fazer companhia à tua".

A rapariga levou tão devagar a mão à boca que só depois ele percebeu que estava a não deixar sair um grito baixinho. Foram os olhos. Foram os olhos que lhe contaram.

O Senhor dos Passos não disse nada.

27.6.05

"... pois se a luz que há em ti for treva, que grande é a treva!"

Evangelho de Mateus 6:23

25.6.05

Mas o que sinto escrevo.

Para @s que vivem hoje um dia (con)sentido, a voz funda de Adélia Prado sob o olhar de Gustave Courbet, a fonte.





I. Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
Vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


II. Objeto de Amar

De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!

Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdôo, eu amo.


III. Serenata

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mãos incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natal como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?


IV. O vestido

No armário do meu quarto escondo de tempo e traça meu vestido estampado em fundo preto.
É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito, meu vestido de amante.
Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo, volatiliza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.


V. Parâmetro

Deus é mais belo que eu.
E não é jovem.
Isto sim, é consolo.

24.6.05

Não tenhais medo

O mundo é mais simples que a ideia mais simples que dele possamos ter. Maior que o horizonte maior. Mais estranho que o nosso sonho mais estranho. O mundo é inexplicável, e no entanto sabêmo-lo desde sempre. É cruel, e no entanto é quem nos ensina a ternura. Vivo, e no entanto é a morte que nele reina. Eterno, e um momento basta para tocarmos o princípio todo, e o inteiro fim. O mundo é um milagre. E milagre é a coisa simples de sermos dele, e ele de nós. Não tenhais medo.

[pensei nisto ao rever os blogs que me acompanham há tanto tempo. os mundos levam a outros mundos. as palavras, a outras palavras. vocês têm-me levado até mim. obrigado]

22.6.05

Carlos V, imperador



Tantas coisas me separam de Carlos V, e no entanto gosto dele como se tivesse andado a seu lado nas guerras que fez a Europa atravessar. Lembras-te? Não era um homem de um só país. Nascido na actual Bélgica, rei de Espanha por herança materna e Imperador da Áustria por sucessão a seu pai, voava sobre a Europa com o seu olhar de águia real como se os sonhos fossem do tamanho do mundo e o dia de hoje um ponto pequenino no grande rio das coisas a fazer. Sim, estávamos por volta de 1520 se te quiseres situar, por aqui Vasco da Gama voltava à Índia como Governador e do Brasil ainda só eram conhecidas as praias e os impensáveis papagaios. Parece que foi ontem, e já passou tanto tempo, talvez os mais novos nem lhe conheçam o rosto altivo.

Era um homem de uma fé profunda, embora muitos dissessem que nele se não distinguiriam nunca o fogo de acreditar e os gelos altos do poder solitário. Os adversários nem sempre eram os estrangeiros, às vezes eram - pensava ele que eram? - os que até à véspera tinham sido companheiros de guerra. Contam que disse aquela frase de que tanto gosto, "falo francês com os homens, italiano com as mulheres, alemão com os cavalos e castelhano com deus". Sim, um homem de uma só face, embora sempre uma face velada.

É tão estranho, o que mais me fascina nele é o modo como entregou o poder, e o modo como o exerceu depois disso. Pela primeira vez em séculos o Imperador abdicou. Sentia talvez que o sonho estava adiado, que a sua bandeira não flutuaria nunca em sua vida em todas as terras entre Lisboa e Budapeste. Astúcia dos capitalistas holandeses, hesitação dos guerreiros, talvez outras coisas ainda. O caminho da História dá afinal tantas voltas. A cerimónia de abdicação demorou um mês inteiro, os homens como ele gostavam de rituais em que eles mesmos fizessem parte da homenagem. Porque digna de atenção era só uma certa ideia de como o mundo devia ser.

Durante um mês inteiro, na neblina de Gand, o imperador foi-se despojando, um a um, de todos os seus títulos, de todas as suas honras. Começou pelos menores, e eram dele uma infinidade de títulos, de senhorios, de condados e ducados: "herdados, conquistados e comprados" como o seu filho diria um dia do Portugal que anexou. Por fim, entregou Espanha a Filipe-o-filho, a Áustria a Fernando-o-irmão (nunca mais as duas cabeças da águia católica se juntaram no mesmo corpo); retirou-se para a solidão altiva de um mosteiro de Castela, e daí governou a Europa por cartas breves que enviava aos que lhe sucederam. Pediu que não houvesse honras no seu funeral, mas foram vistos velhos a chorar.

Sim, hei-de gostar sempre da águia real.

Obrigado, Gotika!

... mas está mal feito. Sou Elisabeth, sim, mas não esta. Sou Elisabeth von Wittelsbach, nascida princesa na Baviera, e imperatriz da Austria-Hungria. Sissi para os amigos. Sempre fui.








Elizabeth I
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You are: Elizabeth I, Queen of England, 1533-1603. With a childhood full of political intrigue, it was assumed that Elizabeth would never become queen. But she did, and as queen managed for a time to quiet her Catholic population with acts of tolerance, promote government reforms, strengthen the currency, and forward the growth of a capitalist economy. Highly educated, she also turned her court into a great center of learning. Elizabeth's foreign relations were uneasy. Always pressured to marry to form political alliances, she diplomatically seemed to consider it, but in the end always refused. Her greatest success was the defeat of the invading Spanish Armada in 1588 in the waters off England's west coast. Her greatest failures were the suppression of uprisings in Ireland and her long wars. During Elizabeth's colorful 45 year reign, England became a strong European power, a vibrant commercial force, and an place of intellectual accomplishment. The "Elizabethan age" rightly was one of England's most fascinating eras.







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"O meu viver escuta"

Sophia

20.6.05

Escuto-vos. Não entendo quase nada do que dizem. Parece-me claro que as coisas deviam ser de outra maneira, de outro modo. Não vou falar, não vou insistir. Tantas coisas já disse, coisas inúteis. Tantas coisas já pedi. Escuto-vos, tento ficar de olhos abertos, vão todos onde vos levar aquilo que vos leva. Há muito tempo que desisti, não tenho jeito para entender. Eu fico. Ao vosso lado só ia atrapalhar. Não sei falar tão alto.

19.6.05

Domingo

Venho agora de um jardim com sombras e bancos de madeira com tinta a quebrar e flores que talvez sejam alfazemas. Venho agora de um passeio pequeno e duas igrejas estavam fechadas, hei-de voltar quando a tarde for mais andada. Venho com um livro encadernado na mão, finalmente mergulhei no Dostoïevski tão grande, "se alguém me provasse que a verdade estava contra Cristo, eu preferiria ficar com Cristo contra a verdade". Venho agora deste Domingo tão igual.

Tenho coisas a dizer coisas a contar, mas não quero agora agitar as águas. Venho de um jardim onde um pombo pousou na água verde de um bebedouro pequeno. Dei um cigarro a um sem-abrigo ruivo que me perguntou se era a Bíblia que eu levava. A rapariga mais bonita do bairro tomou café ao meu lado pela manhã, e gostava de ter sido eu a desenhar-lhe a tatuagem marítima. Em Junho todas as coisas são perfume de flores.

Leio as primeiras páginas d'"Os Pobres", leio a primeira carta de amor de Makar Alexéievitch Diévouchkine para a sua Varvara Dobrosiolova, e leio-as ao som de risos em russo dos que na sombra ao lado se sentavam. Penso que tem de haver rios imensos e lagos num país que fala e canta como se andasse a remar. Penso que estou aqui, nesta Lisboa cansada. Um dia hei-de pousar seda nos teus ombros.

16.6.05

Oscilações

1. Diz um jornalista que com a morte de Álvaro Cunhal "desapareceu" uma forma de fazer política, "desfasada da realidade". Concordo com o "desfasada". Mas não desapareceu. Eu estou ainda mais "desfasado" do que ele estava, e assim continuarei se deus me der vida e saúde. Provavelmente mais ainda, porque à medida que envelheço vai-me faltando a paciência.

2. É verdade, no entanto, que a bolsa não oscilou sequer com a notícia da morte do velho comunista. E "os mercados" é que sabem.

3. Por falar em oscilações, a oscilação dos sacerdotes do inacreditável "Projecto Europeu" entre o choradinho e a chantagem é cansativa. Fico sempre com vontade de esperar pelo jornal de amanhã para saber em que ficamos. Porque parece que é preciso resolver a "ameaça" dos referendos.

4. No meio disto, eu também oscilo: entre o horror de um genuino aristocrata à "intervenção" política ou "cívica" e a indignação de um puro democrata com o excesso de hienas por metro quadrado. A caça às hienas tem, claro, a vantagem de fazer bem ao fígado. E às vezes penso que tenho andado a beber demais.

15.6.05

Meditação sobre o olhar tão puro



Que um anjo entrasse, não foi (entendes)
o que a fez estremecer. Não mais do que outros,
que quando um raio de sol — ou quando à noite a lua —
o seu quarto invadem, se não sobressaltam,
ela não era feita para se perturbar
com o aspecto que um anjo à entrada revestisse;
e mal pressentia que tal forma
era incómoda aos anjos.

(oh, se soubéssemos
como ela era pura. A lagarta que um dia ela viu,
repousada, na floresta, não foi tão penetrada
pelo seu olhar que em si se engendrou o unicórnio,
o animal feito de luz, o animal puro?)

Que um anjo entrasse, não, mas que para si tão perto
se inclinasse o rosto adolescente,
e que assim o seu olhar, e aquele
que ela levantou para ele, concordassem,
como se de repente tudo fosse vazio,
e o que vêem, buscam, levam em si milhões de homens
concentrado nela: ela somente e ele,
a visão e o visto, o olhar e a alegria do olhar
em nenhum outro lugar senão aqui: vê!
isso faz medo. E ambos estremeceram.

Então o anjo cantou a sua melodia.

[pintura: a Anunciação, de Dante Gabriel Rossetti.
Poema: Rainer Maria Rilke, poemas a Maria (tradução ad-hoc)]

14.6.05

O vermelho e o negro



Agora não queria falar, agora não. Ouço o "Inverno" de Vivaldi, que seria o silêncio se o silêncio fosse uma música. Há bocadinho reli uns versos tão puros. Penso em tudo o que me disseste. Lembro-me tão bem das tuas mãos. Lembro-me tão bem de me lembrar. Águas tranquilas ao longe, muros vermelhos tão perto. E da próxima vez atravessarás a noite tão grande.

Fazes-me falta, e o teu vestido negro.

13.6.05

Mysterium crucis



(isto vem do blog "Confessionário de um Padre", e escrevo para a Luz Dourada e para alguns outros que nele encontro. Um dia hei-de falar desse lugar que é igual à sombra dos dias.)

"Nada, absolutamente nada, é para toda a vida", dizia a Luz Dourada, e falava-se do falhanço das nossas coisas e da nossa vontade em ser feliz. Mas eu reparei que a fé dos católicos é a de que tudo, absolutamente tudo, é para a vida toda. Não sei de outra beleza assim, e para mim a beleza é a única fonte da alegria maior. Sempre: este é o Mistério da Cruz.

Tudo é para a vida toda, mesmo as coisas pequenas, coisas que passam. Disso andamos tão esquecidos, e por isso o mundo é agora um mundo tão triste. Frase de padres vingativos? Também Nietzsche-o-filósofo, que odiou a Cruz que aqui vês, disse um dia "não é a intensidade dos sentimentos que conta, mas a sua duração". E desde há séculos que, nos túmulos de D. Pedro e Inês de Castro, a pedra de Alcobaça guarda a frase simples que nos envergonha: "até ao fim do mundo".

Até ao fim do mundo, e por isso a Cruz é sempre o fim da tarde que o meu Friedrich pintou, tão só e tão alta enquanto o dia chora a derrota iminente. Faz tanto frio aqui, tanto vento. Mas a Cruz ergue-se da rocha inamovível, e sobre esta rocha o deus vivo edificou a sua igreja. E repara: da pedra morta dos séculos nasce já a trepadeira, que anuncia a rosa da manhã de ressuscitar.

Não, querida Luz, Deus não quer que sejamos felizes. Conheces a história de Job? Era um homem feliz, sim, e era também um homem justo. Tinha filhos, e rebanhos, e terras, e escravos. Mas um dia caiu sobre ele a desgraça como se fosse a noite, e o filho mais velho morreu e os rebanhos adoeceram e a terra secou e a sua própria carne se desfez em doença e podridão. Job-o-órfão-de-Deus proclama a sua inocência, nada fiz para merecer isto, enquanto os amigos lhe lançam à cara alguma coisa hás-de ter feito, homens ricos que julgavam que o Deus vivo é o premiador das almas gordas. E a sua própria mulher, que o devia conhecer bem, grita-lhe o grito que ainda hoje nos atordoa (quem o não ouviu já?): "Amaldiçoa Deus e morre!". Mas Job aguardou: Mistério de sofrer.

Não, Deus não nos libertou da Cruz. Não nos dispensou de sofrer. Não nos prometeu o arco-íris, nem a poesia, nem o instante de paixão, nem a claridade do sol, nem a compreensão dos homens. Não trouxe um alicate para quebrar os pregos terríveis. Olha para o meu quadro, este é o convite e a promessa e o caminho e a verdade, ou é a verdade da fé dos católicos. Não se trata de não sofrer, mas de aprender o sentido do sofrimento; não se trata de sermos criaturas de luz, mas de dar sentido à escuridão; não se trata de fugir do mundo, mas de abrir os olhos e os ouvidos às trevas dilaceradas e ao grito terrível do mundo. Toda a criatura geme, disse S. Paulo. E só em Cristo se reencontrará, naquilo para que foi feita.

Por isso o mistério da Cruz é, também, o escândalo da Cruz. E o escândalo é que a libertação não venha da espada e do oiro e das coisas fáceis e do momento de enternecer. Escândalo é que a rocha que aqui está pintada não esteja esculpida em degraus e coberta de rosas para que os pés se não magoem a andar. Que a cruz não esteja vazia, porque o Crucificado já lá esteve tempo que chegasse. Que nada, mas mesmo nada, tenha sentido se no fim da noite este homem que adivinhamos não ressuscitar e nos não abrir o caminho da vida eterna. Que não haja aqui coisas-talvez, coisas-até-certo-ponto, coisas que-por-um-lado-mas-por-outro-lado. ("que as coisas que disserem sejam sim, se for sim, e não, se for não", disse ele). A Cruz, ou a rocha vazia frente à noite enorme que se aproxima. É a hora de fechar os olhos, ou de os abrir, até ao fim do mundo. De dar sentido às coisas todas, ou de fazer do absurdo o único sentido delas.

Gosto do teu nome, Luz Dourada.


[pintura: sempre o meu Caspar David Friedrich...
agora, pormenor do retábulo do altar de Tetschen (c. 1808)]

12.6.05

Henri de Montherlant (foi ele que disse a frase que tenho ali em cima), sobre as ilusões do amorzinho feliz e sobre o amor verdadeiro:

"Eu gosto de limonada. Não preciso que a limonada goste de mim."

11.6.05

Roxas flores, águas tranquilas



As buganvílias são isto. Eu tenho sido isto também. Cada mês tem um sabor próprio, uma cor diferente, uma maneira de rir. Cada mês é igual a um bocadinho de mim. Às vezes tenho saudade do Outubro azulado, do Março de hortelã, do Setembro de olhos tão verdes. Mas fazia-me falta ser Junho, ser a dádiva da buganvília que faz a pedra acordar.

7.6.05

Les uns et les autres

Estou tão feliz, estive a chorar. Meia hora de lágrimas a correr, que há tanto tempo não sabia. Meia hora a sentir a vida chegar. Era isto que me faltava.

Um filme, sim, Les uns et les autres, e há tanto tempo que o não via. Quando o descobri num cinema triste do Porto, há tantos anos, fiquei tão preso que durante sete dias o fui ver sete vezes. E depois, até ontem, foi só uma memória doce: a memória de uma dança, de uma música, de palavras, de silêncios. Tudo aquilo de que todos andamos à procura, mostrado como se fosse uma coisa simples, aquilo de que todos fugimos, mostrado como se fosse uma coisa pequena.

"Todos são o outro para cada um, mas raramente somos o Um para cada um dos outros". Uns e outros, uns sem os outros, os outros sem ninguém. Ah, e vejam o Bolero de Ravel como não se acredita que possa ser dançado. Foi assim, de certeza, que dançou o primeiro homem, no primeiro dia do mundo. Vejam o Bolero de Ravel cantado como não sabíamos que pudesse ser cantado. Assim deve ter cantado a primeira mulher na primeira noite do mundo. Vejam o silêncio de Paris. Assim deve ser o último dia. É tão bom chorar, estou tão contente.

Às vezes o meu corpo canta.

6.6.05

Trivial



"Sei o que quero e para onde vou" (Salazar)

"Aquele que sabe para onde vai não chegará muito longe" (Napoleão)

"...sei que não vou por aí" (José Régio)

Trivial, dizemos de coisas simples, coisas pequenas. Os romanos eram mais sábios: trivial era a conversa que se tinha nos momentos difíceis, nos momentos de escolher a estrada: conversa de caminhantes que se encontram na encruzilhada. Porque elas eram, nesse tempo, entregues à protecção de Mercúrio, o deus parecido com o Peter Pan, belo e adolescente, com sandálias aladas que lhe davam o voar tão ágil. Deus dos comerciantes, dos ladrões, dos viajantes. E portanto quem, senão ele, nos olharia na encruzilhada como olha aqui a estátua do deus impassível? Chamava-se trivia a imagem do guardador de estradas... e trivial passou a ser, portanto, a conversa entre desconhecidos que por instantes se cruzavam, descansando na sua sombra antes de seguir a viagem precisa.

Por isso te digo que é bom atentar nas coisas triviais. Não te deixam adormecer, e talvez te despertem para a presença de ladrões, para sinais de guerra, para o destino tão longe. Talvez te ajudem a escolher quando não levares guias contigo. E talvez escondam armadilhas, traições, falsos amigos. Presta atenção e, depois, levanta-te: sacode a capa, deixa que os passos sejam passos. Pois é: já aprendeste a caminhar, mas não penses que as estradas levam ao mesmo lugar. O deus adolescente sorri a todos, mas nem sempre escuta a nossa oração breve. Caminhar é escolher, e estar parado também. Altas, as árvores dançam a dança dos mundos.

[imagem: fotograma do terceiro filme do Senhor dos Anéis]

4.6.05

As armas do Papa Bento



Não, não são pistolas nem canhões, essas são as armas do Império e do Imperador George. São as armas que Joseph Ratzinger escolheu, como é tradição no Vaticano, ao deixar de ser simplesmente Joseph Ratzinger para se tornar Benedictus XVI, sucessor de Pedro, bispo de Roma, pontífice, servo dos servos de deus, e tantas outras coisas que se calhar não pressentimos. Que distância do mundo, não é? Não são em fuchsia ou em verde-vivo, não têm a frase "deseja tudo, consegue tudo", não têm sequer bonequinhos pseudo-amorosos de olhos fora de órbita e língua de fora. Até o chocapic é mais parecido connosco nessas coisas. E é por isso que eu gosto do Papa, é por isso que não gosto do mundo. Um dia contarei as minhas armas também.

Três símbolos antigos, mais de mil anos para cada um. O primeiro é alemão, e antes disso talvez fosse das regiões a que agora chamamos "médio oriente": a cabeça negra do rei, como negro era um dos Reis Magos. Não é uma apologia do anti-racismo, não se trata de evocar o temível Chaka, Rei dos Zulus. A cabeça é negra como negras são tantas imagens antiquíssimas da Virgem e da Deusa Ísis que a antecipou: "nigra aut non nigra", negra e no entanto não-negra, negra porque queimada pelo sol impiedoso da luz verdadeira, a luz abrasadora do deserto. O primeiro símbolo fala-nos de morrer, mas de um morrer que atinge o corpo queimado para que o espírito e a alma se coroem, pois é a alma que é real.

O segundo símbolo é italiano, e antes não sabemos se nasceu do Mediterrâneo tão azul. O urso albardado como se fosse um cavalo. Uma lenda antiga conta que um santo (precisamente chamado Bento, mas não era o S. Bento a que estamos acostumados) se dirigia para Roma, tinha coisas importantes a dizer ao Papa, talvez dizer-lhe que se não andava a portar bem. Ia montado num jumento, como Cristo a caminho dos dias do fim. E da floresta apareceu um urso, e o urso atacou e matou o jumento do santo. "Urso, que fizeste tu?", disse Bento, "como vou agora chegar a Roma, chegar onde deus acha que eu devo ir? tem paciência, urso, eu sei que tu estás habituado à floresta e à liberdade da floresta, e que mataste porque não sabias a verdade. Mas agora tens de me ajudar." E o urso baixou-se, e a sela do jumentinho ajustou-se perfeitamente às suas costas tão fortes, e Bento trotou para Roma como se fosse o Senhor das Florestas. E sim, diz-nos este símbolo, não dividas o mundo muito depressa em coisas boas e coisas más. Andamos todos ao serviço de uma coisa maior, e ainda bem que assim é.

O terceiro símbolo é a vieira de Santiago, o símbolo dos peregrinos, e antes de o apóstolo ser invocado na minha Galiza cercada por árabes e vikings a concha era o símbolo das divindades da água que faz renascer. Estamos perto de Compostela, não é preciso dizer muito mais. A não ser que caminhar é sempre o melhor caminho.

Gosto deste papa, sim. Gosto de histórias antigas, de símbolos, de coisas que nos falam de outras coisas. Gosto daqueles que criam as suas próprias armas, e que se mantém fiéis à divisa que escolheram. Também gosto de cerejas, e não estou a mudar de assunto.