Tantas coisas me separam de Carlos V, e no entanto gosto dele como se tivesse andado a seu lado nas guerras que fez a Europa atravessar. Lembras-te? Não era um homem de um só país. Nascido na actual Bélgica, rei de Espanha por herança materna e Imperador da Áustria por sucessão a seu pai, voava sobre a Europa com o seu olhar de águia real como se os sonhos fossem do tamanho do mundo e o dia de hoje um ponto pequenino no grande rio das coisas a fazer. Sim, estávamos por volta de 1520 se te quiseres situar, por aqui Vasco da Gama voltava à Índia como Governador e do Brasil ainda só eram conhecidas as praias e os impensáveis papagaios. Parece que foi ontem, e já passou tanto tempo, talvez os mais novos nem lhe conheçam o rosto altivo.
Era um homem de uma fé profunda, embora muitos dissessem que nele se não distinguiriam nunca o fogo de acreditar e os gelos altos do poder solitário. Os adversários nem sempre eram os estrangeiros, às vezes eram - pensava ele que eram? - os que até à véspera tinham sido companheiros de guerra. Contam que disse aquela frase de que tanto gosto, "falo francês com os homens, italiano com as mulheres, alemão com os cavalos e castelhano com deus". Sim, um homem de uma só face, embora sempre uma face velada.
É tão estranho, o que mais me fascina nele é o modo como entregou o poder, e o modo como o exerceu depois disso. Pela primeira vez em séculos o Imperador abdicou. Sentia talvez que o sonho estava adiado, que a sua bandeira não flutuaria nunca em sua vida em todas as terras entre Lisboa e Budapeste. Astúcia dos capitalistas holandeses, hesitação dos guerreiros, talvez outras coisas ainda. O caminho da História dá afinal tantas voltas. A cerimónia de abdicação demorou um mês inteiro, os homens como ele gostavam de rituais em que eles mesmos fizessem parte da homenagem. Porque digna de atenção era só uma certa ideia de como o mundo devia ser.
Durante um mês inteiro, na neblina de Gand, o imperador foi-se despojando, um a um, de todos os seus títulos, de todas as suas honras. Começou pelos menores, e eram dele uma infinidade de títulos, de senhorios, de condados e ducados: "herdados, conquistados e comprados" como o seu filho diria um dia do Portugal que anexou. Por fim, entregou Espanha a Filipe-o-filho, a Áustria a Fernando-o-irmão (nunca mais as duas cabeças da águia católica se juntaram no mesmo corpo); retirou-se para a solidão altiva de um mosteiro de Castela, e daí governou a Europa por cartas breves que enviava aos que lhe sucederam. Pediu que não houvesse honras no seu funeral, mas foram vistos velhos a chorar.
Sim, hei-de gostar sempre da águia real.
2 Comments:
brilhante texto! só é pena que a fantasia o leve a dedicar a tão fraca e triste personagem. Nem uns palmos acima do solo se elevou, quanto mais tentar fitar o sol...
Maneiras de ver as personagens! Eu acho que a dedicatória está absolutamente correcta!
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