31.7.04

Pois...
Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.
Bertold Brecht

30.7.04

Afectos, valores, caminhos, tantas coisas...
 
Disse menos afectos e mais valores, e a Profetiza e a Kearinn recordam-me que o mundo tem falta de afecto. Pois tem. Como pode isso ser? É por os valores andarem perdidos que os afectos que há a mais fazem, todos juntos, um mundo sem afecto que chegue. Vou tentar explicar:

Ao contrário dos afectos, os valores servem para fazer as ferramentas mais úteis do mundo: as regras. Por exemplo, a hospitalidade. Quem bater à minha porta e pedir abrigo tem, e não interessa se eu "gosto" dessa pessoa ou não. Por exemplo o cumprimento de contratos. Quem contrata uma pessoa paga-lhe e trata-a decentemente, mesmo sem "afectos". No jornal li, há uns dias, um comentário ao naufrágio do Titanic. Ao contrário do que se vê no filme (mas o filme é feito no país dos "afectos" e da falta de valores, o dos ianques), não foi preciso que a tripulação apontasse armas aos homens ricos para salvar as crianças. Os homens mais poderosos do mundo cederam todos o seu lugar às mulheres, às crianças. Um deles, o Guggenheim que deu o nome aos museus que há agora, escreveu um bilhete para tentar despedir-se da mulher, que não estava lá. Escreveu "que ninguém possa dizer que fui um cobarde". Gosto mais disso do que se ele tivesse dito "eu gosto muito de um mundo feito de passarinhos azuis".

29.7.04

A minha história, antes de começar
 
 
Querido leitor, se hoje ainda não viste o luar espera mais um pouco antes de ler a minha história. Não há pressa, não a leias já. Espera que caia a noite, deixa que a lua se levante enquanto fazes outra coisa qualquer. Depois fecha os olhos e não os abras até que o luar venha ter contigo. Não tenhas medo, não te fará mal… Mas deixa que ele te entre no coração.

Era uma vez, uma noite, a menina que não acreditava nos anjos… e era uma vez, uma noite, o rapazito que tinha medo do luar... Compreendes de que vou falar? Sim, mas não leias a minha história sem primeiro deixar entrar o luar desta noite, o luar da noite em que começa esta história, a noite que começa em todas as histórias em que era uma vez...

A história da menina… misturada com a minha história que hoje (mas só hoje) é para ti, já que o luar te acordou… e não é fácil contar a minha história. Explico-te porquê: é que eu sou um contador de histórias…

Não sei se alguma vez tinhas encontrado algum, se sabes a diferença entre as histórias dos contadores e as outras. É claro que sabes que há histórias, as histórias que todos nós contamos uns aos outros, às vezes também aquelas com que não contamos e que têm sempre um princípio e um fim… Mas terás alguma vez entrado naquelas que não chegam a contar, porque não são mais do que a história do contador de histórias?

Isto podia ser ao contrário: era uma vez um contador de histórias… Esta história podia começar assim mas não seria a história que te vou contar. Era uma vez um contador de histórias… não era nada.

Querido leitor, imagina um castelo alto; imagina um castelo alto e azul, lá onde as brumas sejam feitas de pôr-do-sol e rosas, um castelo tão alto que só lhe podes chegar se tiveres asas como as das águias e olhos como os das crianças, lá em cima onde a noite avermelhada te esconda as terras a perder de vista mas te deixe adivinhar as torres e os estandartes, como se as torres fossem soltas como velas de navio e os estandartes orgulhosos como uma música de Mozart… Agora ouve a música sem deixar de ver o castelo. E presta atenção, sem deixar de ouvir a música e sem deixar de ver o castelo, nas mãos geladas dos cavaleiros que uma noite regressaram para contar a derrota (e a irrelevância da derrota), e nos olhos de aço daquela que os acompanhava e talvez os comandasse. Repara, o sol ainda não rompeu e talvez nunca mais regresse. E agora diz ao mesmo tempo tudo o que queres dizer. O castelo azul fez em ti o mundo parar à espera que encontres os versos inacabados, fez com que as tuas próprias mãos façam a tristeza colorir as praças da cidade, e vês ao longe o sol quente que faz brilhar as raparigas, e lembras-te do sabor incerto dos cafés da tarde e da expressão que terias nos espelhos que nunca te reflectirão.

Não estás a gostar desta história, pois não?… Que pena, é que são assim mesmo as histórias dos contadores… Assim são, e por isso não são contadas. Quem poderia dizer as palavras cristalinas? Nas histórias que contamos uns aos outros não faz mal dizer primeiro a vertigem e depois as mágoas, mas e se a vertigem precisar das mágoas para cantar, e da ondulação do trigo para ganhar as cores da noite, e se na tua invocação quisesses dizer de tudo a dança simultânea? Eu posso falar do grito calado e entregar na tua mão as sombras de ouro. Mas não é disso que se trata.

Não, não são histórias difíceis. As histórias dos contadores são muito simples, só que são feitas das sobras de todas as lágrimas e dos restos de todas as coisas, e é por isso que há poucos contadores de histórias.
 
E esta é também a história da menina que não acreditava nos anjos. Também é fácil perceber porquê: ela nunca os tinha visto com o seu olhar de verde e o seu sorriso de verdade. Não sei é se é tão fácil explicar porque é que o rapazito tinha medo do luar.

Querido leitor, uma vez (eu tinha treze anos) fiquei à janela da minha casa grande, depois de o sol se ir embora e depois de todos se terem ido deitar.
 
Em frente à janela havia uma árvore de folhas enormes, e a seguir um relvado e depois um tanque de pedra e um muro alto onde à noite os fantasmas fingiam que eram gatos enamorados e não me deixavam dormir... Nessa altura eu era apenas um rapazito, e não sabia que as meninas podiam ter olhos verdes nem que as almas podiam ficar cansadas. Eu às vezes ficava cansado: durante o dia ia às aulas e dava passeios de bicicleta, e durante a noite lia livros de aventuras até adormecer. E já tinha visto o rio na manhã de nevoeiro e o mar à tarde, já tinha visto as estrelas e sabia que às vezes as histórias faziam estremecer. Mas uma vez deixei-me ficar à janela (que estava aberta para a árvore das folhas enormes, e para o relvado e o tanque de pedra) e deixei uma música a tocar, que talvez fosse Beethoven ou talvez uma guitarra americana. E foi então que o luar me abraçou, e a minha história ficou pronta para começar.

Eu não sabia que a minha história ia ser assim.

27.7.04

O sol e eu
 
 
O calor desprende-me de mim. Nestes dias mais quentes talvez seja mais parecido com todos os outros: as horas passam-me como a um sonâmbulo, numa vaga recordação de quem seja para além da espessura imediata das coisas que à volta de mim me abafam.
 
Realmente não gosto disto. Das coisas de que sou feito guardo apenas uma vaga e cansada saudade: leio menos, sonho menos, nem sequer triste me sei sentir. Arrasto-me de olhos postos no chão. Os sonhos são ainda mais inquietos.
 
Só o mar me devolveria agora aos mundos grandes de dentro. Só o mar me libertaria do chão. Mas há dois anos que o não vejo quase... e ainda falta tanto para o ter outra vez.  
 
Se a verdade parece a morte, a vida parece o sol.
 
[pintura: Depois do dilúvio: o quadragésimo-primeiro dia
de George Frederic Watts (cerca de 1885)]

26.7.04

Proposta
 
Considerando os magros resultados obtidos nos últimos duzentos anos, proponho um mundo com menos afectos e mais valores.  

25.7.04

Anjos negros, rosas bravas


 
they called me The Wild Rose
but my name was Elisa Day...
NICK CAVE
 
Estou confusa, disse ela, mudaste de opinião, foi?
 
Ele ficou calado um momento.
 
"Nunca aprendi a não ver as coisas tristes", tinha ele dito uma vez. "E na vida pouco pude fazer para fazer o mundo sorrir. Mas eu, que sou quase todo feito das coisas que a ribeira arrasta, queria que os teus olhos soubessem que foram feitos para dar forma, que foram feitos para dar sentido. E que só neles poderás ser". Sim, era isso.
 
Era isso, e era também outra coisa: "Querer não é desejar, nem desejar com muita força", tinha ele querido explicar de uma outra vez. "Querer não é fechar os olhos e suster a respiração até ficar com a cara roxa, como quando as crianças dizem eu vou ser capaz de voar, olha para mim..."
 
Eu sei, dissera ela muito depressa, foi realmente para isso que as inventaram... Bem me parecia que tinhas mudado de opinião. Acontece. Acontece a todos à minha volta, mudam e tentam mudar-me. Tinhas-me dito que os meus olhos eram feitos para dar forma ao mundo todo. E eu quase acreditei.
 
Ele olhou-a devagarinho, como fazia sempre que tentava ver através das palavras dela. E teve pena de não poder adivinhar o gesto do seu sorriso, e lembrou-se outra vez dos versos que ela lhe lembrava.
 
Não mudei, disse baixinho, como se falasse para dentro de si, é verdade que os teus olhos foram feitos para dar forma, que foram feitos para dar sentido. É verdade, mesmo quando a verdade parece a morte e mesmo quando as cores se vestem de negro. E é por isso mesmo que tudo o que vês desenha em ti as rosas bravas. Se quiseres posso-te mostrar. Vem. E estendeu-lhe a mão como se lhe fosse tocar, como se se tivesse esquecido.
 
Mas ela ficou calada, como quando não acreditava no que via.
 
Sabes, continuou ele, a princípio parece complicado. E eu não tenho jeito para falar disto. A princípio é como se estivéssemos sozinhos. Como se o mundo tivesse começado mesmo agora. Como se esta fosse a primeira canção. Mas isto talvez seja porque eu sou do signo de Carneiro, e o Carneiro é feito de começar todos os dias. E é assim que são as crianças. Em cada manhã elas sabem das rosas bravas. Olha para aqui, é assim:
 
 
Lembras-te?, perguntou ele, e era estranho porque parecia agora mais triste. Já foste assim, e eu também, nem que tenha sido por um momento pequenino há muito muito tempo. E nessa altura o mundo foi assim à nossa volta, porque os nossos olhos encontravam nele todas as rosas da manhã.
 
E calou-se, mas não olhou para ela, e nem sabia bem se ela ainda estava ali.
 
A princípio parece complicado, repetiu cada vez mais baixinho. Mas as rosas são a coisa mais simples. Mesmo quando nos magoamos nos espinhos delas. E portanto é assim, a maior parte das vezes nós achamos que queremos coisas, muitas coisas. Queremos ser felizes, queremos que alguém goste de nós, queremos que pare de chover. Mas aí... aí fechamos os olhos, e era aí que os devíamos abrir mais. Fechamos os olhos porque sabemos que vem aí a verdade, e que a verdade parece a morte. E não queremos a chuva, que parece o mundo a chorar.
 
Mas eu quero de ti as rosas bravas. E por isso não quero que feches os olhos, não quero que te escondas nas asas dos anjos escuros. Olha para a verdade e olha para a chuva e olha para as feridas abertas com o olhar que trazias quando as coisas ainda eram inteiras. E se cresceste entretanto, que o teu olhar seja mais forte e mais claro e saiba cruzar a noite e os passos perdidos. Porque eu quero de ti o gesto da princesa mais pura. Quero o olhar que devolve ao mundo as asas roubadas, que lhe entrega o aroma das rosas da antiga manhã. Sim, eu sou quase todo feito das coisas que a ribeira arrasta. E a minha ribeira negra nasceu da sombra dos anjos negros e de rosas mortas a apodrecer.  Mas eu ainda aqui estou. E sim, ainda quero de ti as rosas bravas. E por isso te chamo princesa. Para que não me deixes esquecer a verdade que anda no rosto mais frágil. Para que não me ouças nunca dizer, no meio da minha noite, que não há rosas e que não há manhã. Chamo-te princesa sim, mesmo quando sou feito de rosas mortas.
 
E eu prometi-te um sorriso, disse ela.
A verdade parece a morte.

Diz o João Miguel Fernandes Jorge, que cada vez mais é o nosso poeta maior. A verdade parece a morte, e por isso só os nossos olhos parecem a vida.

Quererá Deus que os homens lhe cheguem agora aos pares? Talvez isso seja assim desde o princípio do mundo. Talvez o Carlos Paredes saiba agora a música exacta dos versos puros da Sophia. Talvez o Serge Reggiani saiba agora cantar a dor escondida nos braços fortes e no olhar de dentro do Marlon Brando. Talvez estejamos mais sós, talvez. E quem mais nos terá deixado, quem anda ainda na terra que é o caminho maior?

A verdade parece a morte, porque na verdade todas as cores do mundo são as cores negras do mundo. Azul negro é o mar. Vermelho negro o coração dos homens. Branco-escuro o silêncio que não sabemos quebrar. Verde-negra a cor da relva que os amantes pisaram. A verdade parece a morte, e a morte parece os dias.

Por isso nós, nós que ainda andamos na terra, fazemos sem saber o caminho que se refaz até ao lugar do início, o caminho grande que leva ao princípio de todas as coisas. Hoje é 25 de Julho, dia de Santiago Maior na minha meiga Galicia. Hoje, dia de Santiago em ano Xacobeo, toda a Terra é o caminho que os peregrinos fazem a andar.

A verdade parece a morte, sim. E a vida parece feita de coisa nenhuma, azul negro é o mar

22.7.04

Talvez um dia



 
talvez haja um dia em que esta luz cansada
seja a noite aberta e seja a madrugada

em que o vento frio das ruas de inverno
seja a brisa inteira e seja amor eterno

talvez haja um dia em que as coisas que passam
caibam nos meus sonhos e não os desfaçam

em que as noites sejam um berço de estrelas
e os meus olhos puros saibam compreendê-las

talvez haja um dia talvez haja um mar
em que as minhas barcas possam navegar

e estas mãos desenhem o vento e as velas
e eu me faça inteiro para embarcar nelas

talvez haja histórias que um dia eu direi...
talvez haja mundos... como os que vos dei. 
 
[desenho: L'Apocalypse, de Pierre-Yves Trémois]

21.7.04

Querer, desejar... e de novo os falcões antigos


"de querer não nos é dado mais que o crermos querer"
Goldmundo


Queria falar de tantas coisas, lendo coisas que aqui me deixam; e queria saber falar delas como o mundo me soube sempre falar cá dentro, mesmo quando cá dentro não havia ninguém a escutar. Sempre quis tanta coisa. E perguntou-me o Ebola (a quem já prometi falar do bem, do mal, e dos caminhos que nos conduzem a eles) se não deveria estar, ali na frase que ali em cima está agora, "que o querermos crer". Queria falar de tantas coisas. Queria dizer que não é querer aquilo que geralmente queremos.

Querer não é desejar, nem desejar com muita força. Querer não é fechar os olhos e suster a respiração até ficar com a cara roxa, como quando as crianças dizem eu vou ser capaz de voar, olha para mim. Deixem-me contar uma história, que é contada nos livros sagrados indianos:
 
Havia três príncipes irmãos, e havia um velho que talvez fosse feiticeiro e que vinha ensinar-lhes as artes da guerra. Vinha saber também (mas creio que isso não lhes disse ele) qual dos príncipes seria mais capaz de um dia cingir a coroa.
 
O velho ensinou-lhes a nobre arte do tiro com arco, e como primeiro alvo deixou-lhes, a muitos passos de distância, um falcão embalsamado. E disse-lhes, eu quero que cravem a vossa flecha no olho daquele falcão.
 
E disse então ao primeiro irmão, aponta o teu arco, e ele assim fez. O que vês?, disse o velho. Vejo um pau, e na ponta do pau um pássaro embalsamado. Dispara, disse o velho. E a flecha passou ao lado.
 
E disse o velho ao segundo irmão a mesma coisa. O que vês? Vejo, disse o segundo irmão, o alvo que me apontaste. Dispara então, disse o velho. E a flecha não chegou tão longe.
 
E falou então o velho ao irmão mais novo. O que vês? Vejo - disse o mais novo, como se falasse consigo mesmo - o olhar do falcão. O velho não disse mais nada. E a flecha partiu.
 
Não se trata de pontaria. Só um dos irmãos quis o arco, e o alvo.  Só ele quis.
 

19.7.04

A Tricana
 
E se um do outro dissemos, sob o claro
cipreste — Companheiro... — e quase, em breve prece
as mãos se nos uniram em assombro raro,
não foi, Tricana, porque em nós houvesse
 
mais que o cipreste claro e a incerta voz.
Mas queiramos crer (de querer não nos é dado
mais que o crermos querer) que fora em nós,
confusamente, sentido o murmurado
 
e sombrio canto de um ignoto deus;
e esse momento guardemos, no profundo
alfobre da minha dor e desses teus
 
sonhos, e o teremos até ao fim do mundo...
— e sejamos um do outro o eterno adeus,
como se fora eu Narciso, e tu Goldmundo... 

18.7.04

Requiem
 
Meus amigos, se vierem
ver-me quando eu vos não vir,
não ouçam o que disserem
os que vierem por vir...
 
Esses, que dirão coitado
desse que agora passou…

mas que passaram ao lado
do que me fez ser quem sou,
 
esses, que virão agora,
de luto e cheios de pena,
íntimos de última hora
só porque saí de cena,
 
esses, amigos, decerto
mil coisas dirão de mim:
que eu não era muito certo,
certo era só o meu fim,
 
que ontem parecia tão moço,
hoje está morto, acabado...
hão-de vir depois de almoço,
hão-de ficar um bocado,
 
e depois – é assim a vida!
hão-de ir embora de vez...
ai, na hora mais comprida
fiquem comigo vocês...
 
que eu vou... e nunca mais venho
(- Fiquem só mais um pouquinho;
fiquem comigo, que eu tenho
tanto medo de ir sozinho...
)
 
fiquem... mas tomem cuidado,
não percam tempo demais...
(— Eu fico bem, obrigado,
os mortos não sentem mais...) 
  
Meus amigos, que o meu tempo
foi tão curto p’ra vos ter…
tanto tempo sem ter tempo,
tão pouco tempo a aprender,
  
e agora, que é muito tarde,
só uma coisa por contar:
o amor é um fogo que arde
sem se ver que anda a queimar,
 
e por isso os olhos que ardem
do amor que viram tão bem,
foram feitos p'ra que guardem
sonhos desfeitos também;
 
e agora, que vos não vejo,
vejam-me, amigos, vocês:
como a marca de um só beijo
nos marca às vezes de vez...
 
Meus amigos, vão-se embora
que o dia vai-se acabando...
(quem da noite se enamora
sabe que o fim é mais brando...)
 
Não se esqueçam, nunca façam
o que eu fiz logo à partida:
deixar que as coisas que passam
passem à frente da vida... 
 
Não digo mais nada agora.
Choram-me os olhos sem cor.
Mas antes de irem embora
queria um último favor:
 
queria uma laje pequena
e uma inscrição bem legível
(o nome, não vale a pena...):
“hoje não estou disponível”

15.7.04

A morte e cinco palavras

Até ao fim do mundo. É a frase que está gravada nos túmulos de pedra de D. Pedro e de Inês de Castro. Como a morte e cinco palavras chegam para uma história de amor.

14.7.04

Que mal tem, se te fica bem?

Durante séculos teólogos e filósofos discutiram se o mal tinha uma existência própria. Quer dizer, o mal existe por si ou limita-se a ser a ausência do bem? A maior parte das polémicas entre os primeiros católicos (digamos, os católicos dos primeiros mil anos) e os seus adversários centrava-se aqui. É claro que defender que o mal existe era importante para dizer, depois, coisas como "eu podia ter sido um santo ou um criminoso. Escolhi ser criminoso". (falei ontem desta frase noutro blog e entretanto lembrei-me onde a li. Anne Rice, evidentemente). Como quem diz, "eu podia ter ido pela direita ou pela esquerda. Fui pela esquerda..." Como se o mal fosse um caminho.

Hoje (alguém deu por ela?), voltamos a falar disso, mas ao contrário. Já não dizemos "isso é bom...", mas "não vejo que mal é que isso tem...".

O bem é hoje, apenas, a ausência de mal. E por isso a vida é apenas a ausência momentânea da morte. E, claro, que mal é que tem pensar assim?

Lembrei-me disto ao ouvir hoje, nas Amoreiras, este fabuloso diálogo:

- Gamei esta saia à minha irmã, sabes?

- Que mal é que tem? Fica-te tão bem...

3004

O que é que gostaríamos que fosse recordado do nosso tempo, daqui a mil anos? E o que é que achamos que será recordado, quer gostemos quer não?

13.7.04

O mundo, como um unicórnio



A mim, que sou quase todo feito de nada, entristece-me a tua ânsia de prender as palavras frágeis, de te embrulhar nelas como se te agasalhassem do vento mais forte. A mim, que sou quase todo feito de noite, entristece-me a tua ânsia de agarrar a beleza, de te misturar nela como se fosse em ti o véu da noiva ansiosa.

De que te queres proteger? Tu sabes que o perfume das rosas bravas não está na palavra "rosas", e o silêncio do azul claro não vem da palavra "mar". E em quantas coisas não reparaste, absorvido que estavas na beleza inútil da arte que as ocultou?

Olha para mim se não acreditas. Eu sou o primeiro a fraquejar, e por isso não te alegres se me vires dizer as rosas bravas. Para falar ao vento bastam palavras; para falar ao coração são precisas obras. E as obras nascem só do silêncio e da pedra e dos olhos que sabem guiar-se pelas mãos cansadas.

Não, não te alegres se eu cantar o mundo e os seus lugares de beleza. Porque não estarei a fazer mais que a disfarçar as lágrimas, e eu não gosto de chorar. Não te alegres sequer se me vires falar. É só porque calar-me era uma mentira maior.

Nunca aprendi a não ver as coisas tristes. E na vida pouco pude fazer para fazer o mundo sorrir. Mas eu, que sou quase todo feito das coisas que a ribeira arrasta, queria que os teus olhos soubessem que foram feitos para dar forma, que foram feitos para dar sentido. E que só neles poderás ser.

Sim, queria que entre ti e as trevas não houvesse o véu das palavras fáceis. Queria que olhasses cada um dos gritos que te prendem, cada um dos grilhões insustentáveis. Não te escondas atrás de palavras bonitas. Não acendas luzinhas na escuridão. Deixa as tuas mãos serem os teus olhos, e deixa os teus olhos tocar. E então sim, poderás falar. E experimenta dizer baixinho "princesa", como se chamasses a verdade: verás sorrir a beleza frágil, e junto dela o mundo. O mundo, como um unicórnio.



(a frase destacada é do Padre António Vieira;
a aguarela é de Antoine Chapon)

12.7.04

uma noite na ribeira negra

E se Deus, que me fez corda de guitarra,
não me quis em outras mãos para tocar,
foi talvez porque a Sua, que me agarra,
tira em mim acordes feitos de aguardar...

Foi talvez p'ra que ele possa enfim, coitado,
andar comigo à noite e aprender a rezar...
ai, se ouvires o próprio Deus cantar o fado
fui eu a guitarra que o soube ensinar...

E se me vires guitarra partida no chão
passa de mansinho... deixa-me dormir...
é porque eu toquei a Deus tal solidão
que ele foi-se embora... para não me ouvir...

11.7.04

A fábrica da verdade

Se tenho poucos blogs para indicar, linkando, é principalmente por preguiça minha. Cheguei ao tempo em que prefiro reencontrar a descobrir, e reler a navegar. Mas nestes dias reencontrei a Keira_Kearinn que agora na Via Occulta não nos deixa perdidos longe de Tir-na-n'Og. Encontrei em Elsinore alguém que se recorda dos Galapiats (bem, aos mais novos isto passa ao lado) e que me parece feita de linhas direitas. E até a minha madrinha Gotika me levou ao Grito do Silêncio, onde encontrei coisas que queria ter sido eu a saber dizer, enquanto a Fábrica dos Sonhos volta a dar lugar à lua maior.

São sítios de que eu já sou feito um bocadinho também, sítios largos em que me vou encontrando. Mas não é pela beleza ou pela arte que te convido a visitá-los e a demorares-te neles. É porque cada um deles é um esboço da Fábrica da Verdade. E é da verdade que todos nós mais precisamos, seja feita de caminhos, de castelos, de gritos ou de sonhos, seja feita de almas danadas ou de purgatórios andados. Viste a Paixão de Cristo, as palavras de Cláudia a mulher de Pilatos? "Se não souberes reconhecer a verdade quando a encontras, ninguém ta poderá ensinar".

A Ribeira, mais uma vez: real, royal

Deixar correr a Ribeira tem sido para mim, nestes dias, um esforço grande: ando cansado, ando afogado num trabalho que não termina, ando triste com pessoas que à minha volta me dizem (como me disseram há dois dias), "o teu mal é nem te lembrares que existem os outros" (eu acho que normalmente me lembro dos outros). E tenho andado a pensar em deixar a Ribeira secar, aproveitando o Verão desolado. Mas os comentários a alguns dos últimos posts, ao Remorso, à Rapariga de Outono ou ao Olhar do Falcão, dão-me razões para ficar. Obrigado. E sobre o olhar e os caminhos que ele faz queria responder aos que me falaram (é engraçado como se percebe, lendo tudo isto, que há aqui uma obsessão minha; não tinha nunca dado por ela). Espero ter tempo daqui a pouco.

Uma frase que li ontem, vinda de um sítio que muitos de vós acharão estranho (palavras de um cardeal católico): "tudo o que é real é verdadeiro". Se posso mais uma vez brincar com as palavras, everything that is real is true. everything that is royal is true.

8.7.04

O olhar nocturno do falcão (II)


A vida não tem sentido enquanto os olhos se não abrirem. Mas os olhos vêm de dentro, de muito longe cá dentro...

(desenho de Pierre-Yves-Trémois)

O olhar nocturno do falcão


O olhar da luz mais cansada, e também o olhar da noite maior.

O olhar da pedra, do fogo, do metal, do gelo, o olhar que sabe a forma dos gritos.

O olhar que te dá a poesia e a pintura e a dança e a música, que te devolve as coisas sagradas com o olhar nocturno do falcão.

Sim, tinham olhos rasgados por dentro e hoje todos eles estão mortos. Mas assim era o olhar que nos fez. Tu vives. E os teus olhos foram feitos para serem iguais a estes, para forjar em silêncio o ouro mais puro. Mas tu ainda não acreditas no que vês.


Ia e vinha.
E a cada coisa perguntava
que nome tinha.


(Samuel Beckett, Sophia, Ezra Pound, von Karajan, Hermann Hesse, Leni Riefenstahl, W. B. Yeats, Karen Blixen. Versos de Sophia de Mello Breyner.)

6.7.04

A espada que brada



talvez tenhas vindo ler isto porque começas a confiar em mim.
erro. neste mundo não confies em ninguém.
talvez tenhas vindo ler isto porque ainda há pouco tempo te magoaste. mas eu tudo farei para te magoar mais.
pois é, nada vai melhorar. não devias ter entrado aqui. ah, pois. a saída. não há saída. welcome to the panic room. welcome to the fight club.

e vós que entrais aqui, abandonai toda a esperança... não te avisaram? não me digas que não te avisaram. pensavas que o mundo era feito de quê? chocolate? cala-te.

olha à volta, mas olha à volta agora. isto é a tua vida. não vai melhorar. isto é a tua vida, e desde que entraste aqui estás dois minutos mais perto do fim. queres aproveitar o quê? só os vermes aproveitarão.

you are not a beautiful and unique snowflake

e ainda não acabei. só acabo quando acabar contigo. cala-te e ouve. abre os olhos: abre-os até se rasgarem e verás rasgarem-se as cores torpes com que andaste a mascarar o mundo. abre-os até gritarem e verás os véus da beleza cair e revelar a face verdadeira do senhor deste mundo. mas abre-os, olha, vê, grita, luta: a espada quebrada é a única coisa que te resta. a espada quebrada, sim. a espada que brada.
luta.
pois, o mal diz-se melhor em inglês, não é? a força também, power

you have to give up, you have to give up.
FIGHT.

Everything is changing.
Everything is falling apart.

RISE.

this is your life it doesn't get any better than this.
this is your life and it's ending one minute at a time.

LIVE.

welcome to the panic room. bem vindo ao quarto escuro das coisas. ladies and gentlemen, senhoras e senhores, and now for something completely... que disparate.

mete bem isto na cabeça: não há razão nenhuma para viver. não há razão nenhuma para lutar. não há sítio nenhum onde ir ter. mete bem isto na cabeça e aperta com força o punho da espada. porque se é assim não há razão para não viver, para não lutar, para não ir a todo o lado. não me venhas falar em tédio. os entediados adoram viver a sua vidinha breve. nem sabem que não se pega numa espada pela lâmina. que não adianta impedir a noite de brilhar.

abandona a esperança neste mundo. eu quero-te invencível. eles dizem que da pedra triste não é possível arrancar o metal com que forjaremos a espada que brada. vamos ver?

welcome to the panic room. welcome to the land of liberty.

2.7.04

Remorso

Porque é que eu nunca sei escrever uma coisa que se entenda?
O lugar do início (IV): pedra, metal

O meu sítio dos arcos de pedra é às vezes um sítio feito do mais puro metal; o meu lugar do início é às vezes o lugar dos hinos do fim. E há noites em que nele só me faltam o fogo e o frio.

Há um sítio na minha noite em que a noite se faz a casa abrigada. Há um sítio feito de arcos de pedra e vultos negros em que às vezes marco encontro comigo e com tanto que dentro de mim anda quieto. Há um sítio em que quase faço o mundo parar. Mas às vezes passam lá estranhos passos.

É como se da noite nascesse a chama mais alta. É como se das sombras nascesse a força maior. De repente não é nas paredes e na pedra que há coisas, mas no centro que está a fúria e o canto e a raiva e a voz dos sangues.

Arcos de pedra, noites de metal. Estranhos passos. Mas há uma história antiga, sim - na pedra foi cravada a espada mais forte, a espada feita do aço verdadeiro. E aquele que souber empunhar o metal que a pedra afaga será para sempre o rei da terra dos homens.