13.7.04

O mundo, como um unicórnio



A mim, que sou quase todo feito de nada, entristece-me a tua ânsia de prender as palavras frágeis, de te embrulhar nelas como se te agasalhassem do vento mais forte. A mim, que sou quase todo feito de noite, entristece-me a tua ânsia de agarrar a beleza, de te misturar nela como se fosse em ti o véu da noiva ansiosa.

De que te queres proteger? Tu sabes que o perfume das rosas bravas não está na palavra "rosas", e o silêncio do azul claro não vem da palavra "mar". E em quantas coisas não reparaste, absorvido que estavas na beleza inútil da arte que as ocultou?

Olha para mim se não acreditas. Eu sou o primeiro a fraquejar, e por isso não te alegres se me vires dizer as rosas bravas. Para falar ao vento bastam palavras; para falar ao coração são precisas obras. E as obras nascem só do silêncio e da pedra e dos olhos que sabem guiar-se pelas mãos cansadas.

Não, não te alegres se eu cantar o mundo e os seus lugares de beleza. Porque não estarei a fazer mais que a disfarçar as lágrimas, e eu não gosto de chorar. Não te alegres sequer se me vires falar. É só porque calar-me era uma mentira maior.

Nunca aprendi a não ver as coisas tristes. E na vida pouco pude fazer para fazer o mundo sorrir. Mas eu, que sou quase todo feito das coisas que a ribeira arrasta, queria que os teus olhos soubessem que foram feitos para dar forma, que foram feitos para dar sentido. E que só neles poderás ser.

Sim, queria que entre ti e as trevas não houvesse o véu das palavras fáceis. Queria que olhasses cada um dos gritos que te prendem, cada um dos grilhões insustentáveis. Não te escondas atrás de palavras bonitas. Não acendas luzinhas na escuridão. Deixa as tuas mãos serem os teus olhos, e deixa os teus olhos tocar. E então sim, poderás falar. E experimenta dizer baixinho "princesa", como se chamasses a verdade: verás sorrir a beleza frágil, e junto dela o mundo. O mundo, como um unicórnio.



(a frase destacada é do Padre António Vieira;
a aguarela é de Antoine Chapon)