25.7.04

Anjos negros, rosas bravas


 
they called me The Wild Rose
but my name was Elisa Day...
NICK CAVE
 
Estou confusa, disse ela, mudaste de opinião, foi?
 
Ele ficou calado um momento.
 
"Nunca aprendi a não ver as coisas tristes", tinha ele dito uma vez. "E na vida pouco pude fazer para fazer o mundo sorrir. Mas eu, que sou quase todo feito das coisas que a ribeira arrasta, queria que os teus olhos soubessem que foram feitos para dar forma, que foram feitos para dar sentido. E que só neles poderás ser". Sim, era isso.
 
Era isso, e era também outra coisa: "Querer não é desejar, nem desejar com muita força", tinha ele querido explicar de uma outra vez. "Querer não é fechar os olhos e suster a respiração até ficar com a cara roxa, como quando as crianças dizem eu vou ser capaz de voar, olha para mim..."
 
Eu sei, dissera ela muito depressa, foi realmente para isso que as inventaram... Bem me parecia que tinhas mudado de opinião. Acontece. Acontece a todos à minha volta, mudam e tentam mudar-me. Tinhas-me dito que os meus olhos eram feitos para dar forma ao mundo todo. E eu quase acreditei.
 
Ele olhou-a devagarinho, como fazia sempre que tentava ver através das palavras dela. E teve pena de não poder adivinhar o gesto do seu sorriso, e lembrou-se outra vez dos versos que ela lhe lembrava.
 
Não mudei, disse baixinho, como se falasse para dentro de si, é verdade que os teus olhos foram feitos para dar forma, que foram feitos para dar sentido. É verdade, mesmo quando a verdade parece a morte e mesmo quando as cores se vestem de negro. E é por isso mesmo que tudo o que vês desenha em ti as rosas bravas. Se quiseres posso-te mostrar. Vem. E estendeu-lhe a mão como se lhe fosse tocar, como se se tivesse esquecido.
 
Mas ela ficou calada, como quando não acreditava no que via.
 
Sabes, continuou ele, a princípio parece complicado. E eu não tenho jeito para falar disto. A princípio é como se estivéssemos sozinhos. Como se o mundo tivesse começado mesmo agora. Como se esta fosse a primeira canção. Mas isto talvez seja porque eu sou do signo de Carneiro, e o Carneiro é feito de começar todos os dias. E é assim que são as crianças. Em cada manhã elas sabem das rosas bravas. Olha para aqui, é assim:
 
 
Lembras-te?, perguntou ele, e era estranho porque parecia agora mais triste. Já foste assim, e eu também, nem que tenha sido por um momento pequenino há muito muito tempo. E nessa altura o mundo foi assim à nossa volta, porque os nossos olhos encontravam nele todas as rosas da manhã.
 
E calou-se, mas não olhou para ela, e nem sabia bem se ela ainda estava ali.
 
A princípio parece complicado, repetiu cada vez mais baixinho. Mas as rosas são a coisa mais simples. Mesmo quando nos magoamos nos espinhos delas. E portanto é assim, a maior parte das vezes nós achamos que queremos coisas, muitas coisas. Queremos ser felizes, queremos que alguém goste de nós, queremos que pare de chover. Mas aí... aí fechamos os olhos, e era aí que os devíamos abrir mais. Fechamos os olhos porque sabemos que vem aí a verdade, e que a verdade parece a morte. E não queremos a chuva, que parece o mundo a chorar.
 
Mas eu quero de ti as rosas bravas. E por isso não quero que feches os olhos, não quero que te escondas nas asas dos anjos escuros. Olha para a verdade e olha para a chuva e olha para as feridas abertas com o olhar que trazias quando as coisas ainda eram inteiras. E se cresceste entretanto, que o teu olhar seja mais forte e mais claro e saiba cruzar a noite e os passos perdidos. Porque eu quero de ti o gesto da princesa mais pura. Quero o olhar que devolve ao mundo as asas roubadas, que lhe entrega o aroma das rosas da antiga manhã. Sim, eu sou quase todo feito das coisas que a ribeira arrasta. E a minha ribeira negra nasceu da sombra dos anjos negros e de rosas mortas a apodrecer.  Mas eu ainda aqui estou. E sim, ainda quero de ti as rosas bravas. E por isso te chamo princesa. Para que não me deixes esquecer a verdade que anda no rosto mais frágil. Para que não me ouças nunca dizer, no meio da minha noite, que não há rosas e que não há manhã. Chamo-te princesa sim, mesmo quando sou feito de rosas mortas.
 
E eu prometi-te um sorriso, disse ela.