29.7.04

A minha história, antes de começar
 
 
Querido leitor, se hoje ainda não viste o luar espera mais um pouco antes de ler a minha história. Não há pressa, não a leias já. Espera que caia a noite, deixa que a lua se levante enquanto fazes outra coisa qualquer. Depois fecha os olhos e não os abras até que o luar venha ter contigo. Não tenhas medo, não te fará mal… Mas deixa que ele te entre no coração.

Era uma vez, uma noite, a menina que não acreditava nos anjos… e era uma vez, uma noite, o rapazito que tinha medo do luar... Compreendes de que vou falar? Sim, mas não leias a minha história sem primeiro deixar entrar o luar desta noite, o luar da noite em que começa esta história, a noite que começa em todas as histórias em que era uma vez...

A história da menina… misturada com a minha história que hoje (mas só hoje) é para ti, já que o luar te acordou… e não é fácil contar a minha história. Explico-te porquê: é que eu sou um contador de histórias…

Não sei se alguma vez tinhas encontrado algum, se sabes a diferença entre as histórias dos contadores e as outras. É claro que sabes que há histórias, as histórias que todos nós contamos uns aos outros, às vezes também aquelas com que não contamos e que têm sempre um princípio e um fim… Mas terás alguma vez entrado naquelas que não chegam a contar, porque não são mais do que a história do contador de histórias?

Isto podia ser ao contrário: era uma vez um contador de histórias… Esta história podia começar assim mas não seria a história que te vou contar. Era uma vez um contador de histórias… não era nada.

Querido leitor, imagina um castelo alto; imagina um castelo alto e azul, lá onde as brumas sejam feitas de pôr-do-sol e rosas, um castelo tão alto que só lhe podes chegar se tiveres asas como as das águias e olhos como os das crianças, lá em cima onde a noite avermelhada te esconda as terras a perder de vista mas te deixe adivinhar as torres e os estandartes, como se as torres fossem soltas como velas de navio e os estandartes orgulhosos como uma música de Mozart… Agora ouve a música sem deixar de ver o castelo. E presta atenção, sem deixar de ouvir a música e sem deixar de ver o castelo, nas mãos geladas dos cavaleiros que uma noite regressaram para contar a derrota (e a irrelevância da derrota), e nos olhos de aço daquela que os acompanhava e talvez os comandasse. Repara, o sol ainda não rompeu e talvez nunca mais regresse. E agora diz ao mesmo tempo tudo o que queres dizer. O castelo azul fez em ti o mundo parar à espera que encontres os versos inacabados, fez com que as tuas próprias mãos façam a tristeza colorir as praças da cidade, e vês ao longe o sol quente que faz brilhar as raparigas, e lembras-te do sabor incerto dos cafés da tarde e da expressão que terias nos espelhos que nunca te reflectirão.

Não estás a gostar desta história, pois não?… Que pena, é que são assim mesmo as histórias dos contadores… Assim são, e por isso não são contadas. Quem poderia dizer as palavras cristalinas? Nas histórias que contamos uns aos outros não faz mal dizer primeiro a vertigem e depois as mágoas, mas e se a vertigem precisar das mágoas para cantar, e da ondulação do trigo para ganhar as cores da noite, e se na tua invocação quisesses dizer de tudo a dança simultânea? Eu posso falar do grito calado e entregar na tua mão as sombras de ouro. Mas não é disso que se trata.

Não, não são histórias difíceis. As histórias dos contadores são muito simples, só que são feitas das sobras de todas as lágrimas e dos restos de todas as coisas, e é por isso que há poucos contadores de histórias.
 
E esta é também a história da menina que não acreditava nos anjos. Também é fácil perceber porquê: ela nunca os tinha visto com o seu olhar de verde e o seu sorriso de verdade. Não sei é se é tão fácil explicar porque é que o rapazito tinha medo do luar.

Querido leitor, uma vez (eu tinha treze anos) fiquei à janela da minha casa grande, depois de o sol se ir embora e depois de todos se terem ido deitar.
 
Em frente à janela havia uma árvore de folhas enormes, e a seguir um relvado e depois um tanque de pedra e um muro alto onde à noite os fantasmas fingiam que eram gatos enamorados e não me deixavam dormir... Nessa altura eu era apenas um rapazito, e não sabia que as meninas podiam ter olhos verdes nem que as almas podiam ficar cansadas. Eu às vezes ficava cansado: durante o dia ia às aulas e dava passeios de bicicleta, e durante a noite lia livros de aventuras até adormecer. E já tinha visto o rio na manhã de nevoeiro e o mar à tarde, já tinha visto as estrelas e sabia que às vezes as histórias faziam estremecer. Mas uma vez deixei-me ficar à janela (que estava aberta para a árvore das folhas enormes, e para o relvado e o tanque de pedra) e deixei uma música a tocar, que talvez fosse Beethoven ou talvez uma guitarra americana. E foi então que o luar me abraçou, e a minha história ficou pronta para começar.

Eu não sabia que a minha história ia ser assim.