Por culpa de Fidel. O primeiro filme de Julie Gavras, e filmes assim são tão parecidos com o que sempre sou: o mundo, do outro lado da ponte a que chamamos ver. Do outro lado dos gestos todos.
Anna de La Mesa (tem a minha idade) vive em Paris num mundo de que me lembro ainda. A França do General De Gaulle. Tudo está acabado, diz o avô quando De Gaulle morre, la France est veuve. Mundo viúvo sim, viúvos os olhos da condessinha de La Mesa, condessinha de Aragão das histórias que esse tempo ainda trazia. A Espanha do General Franco, o Chile tão longe, a rua. Culpa de Fidel? Fidèle era a Anna, e custou-lhe tanto aprender. Nem sempre há portas para o que importa mais.
A condessinha passava as férias no castelo dos avós franceses, e logo no princípio a vemos a aprender o mundo (era um casamento, a festa de um casamento) como se andasse no ballet por dentro, como se andasse num livro por fora. Tão grave. Tão grandes os olhos, tão iguais às árvores do parque do castelo. A condessinha tinha uma família espanhola (a família do pai, e com o pai andam sempre o negro e o silêncio e o amor que não sabe dizer), e de repente uma prima calada, um tio morto de morte matada, uma tia a desfazer-lhe a história como a história do mundo a desfizera a ela. Veuve. De repente mudou o mundo, e Anna de La Mesa ficou igual.
O pai de Anna reage como reagem os que parecem fracos. Tínhamo-lo visto na festa, fato negro e cabelo escovado como os aristocratas que se curvam ao peso da idade nova. Tínhamos visto não sei que lume nos seus olhos (Ay Carmela). E lança-se na revolução - na revolução como os anos 70 a entendiam - como quem se atira a um rio que o não deixe voltar. Ai condessinha calada, ai dos teus olhos a olhar.
Entre as freiras do colégio e los barbudos com quem o pai conspirava, entre o jardim grande que não havia mais e a falta de dinheiro que por todo o lado aparecia, entre o caos por fora e a ordem por dentro se passa um ano; um ano da vida dela, duas horas da nossa vida presos a uma criança que não sabe que corpo e alma dizem os grandes serem coisas distintas. Que não sabe porque andam os crescidos a fazer coisas estranhas. Que vê como estranhas são as coisas simples que a faziam por dentro.
(Um dia a condessinha viaja com o pai até ao castelo de Espanha, onde aprendemos que a história começou. Mas chegamos tarde e não há lá ninguém senão as fotografias guardadas, os túmulos de mármore dos condes que antes dela viram não sabemos o quê. Não há lá ninguém senão a música, que em momento nenhum se faz tão forte para nos fazer sentir tão longe. Anna pára junto ao portão onde velam as armas orgulhosas da família morta, e talvez aí se lembre da raposa que o avô francês mostrou. E se querem saber mais vejam o filme, sim.)
Como podes ter a certeza? Como podes saber a diferença? Como posso eu saber que vale a pena a rua, que vale a pena ser isto, que vale a pena doer?
Não sei se foi por culpa de Fidel, se por culpa dos meus olhos.
4 Comments:
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ola Goldmundo,
tudo de bom e um bom final de semana para voce...
[]s
força sempre!!!
ate +++
RedDevil
A culpa não foi dele... velhote! ;)
Ja estou livre. Trouxe comigo o barulho das fechaduras a serem fechadas.
E a certeza que encontrei Goldmundos e Narcisos e Lobos das Estepes. Estão lá, na outra margem e recusam - por vontade consciente - vir para a margem do cá.
Acho que descobrir a cor do sentir.
Não vi, deixei passar, como deixo passar tantas coisas de que sei que gostaria. Agora também não hei-de ver, por causa da imagem tão nítida que ficou da menina que "aprende o mundo como se andasse no ballet por dentro".
Devias contar histórias, sempre, sempre. Tuas ou de outros. As que já conheço ficam muito melhores contadas por ti.
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