Há no Largo das Belas Artes uma casa grande fechada, como se estivesse à espera de que a fossem buscar. É uma casa antiga com muitas janelas, daquelas que foram feitas quando as histórias ainda não tinham chegado ao fim. Está abandonada há muitos anos. Tenho a certeza de que não quer ser um condominio de luxo. Tenho a certeza de que gosta mais do Inverno, que se sente incomodada quando em Agosto aquilo se enche de turistas e de espanhóis a falar alto. Há no Largo das Belas Artes uma casa que é igual a mim.
Gostava de poder ir buscá-la. Gostava de ter um bar, e de ter um alfarrabista, eram duas coisas que me fariam feliz. Talvez os livros pudessem ficar na cave, haveria uma porta pequena e pouca gente saberia dele para me não comprarem os livros todos. Talvez o bar pudesse ficar no primeiro andar.
Gostava de ter um bar, e não sei nada de música e não sei nada de bebidas a não ser que gosto de cerveja e de bebidas feitas de absinto. Mas haveria pessoas para fazer essas coisas bem. Talvez precisasse de um espaço muito grande, embora aquilo nunca fosse um lugar para muita gente. Mas eu gosto de espaços grandes. O bar seria como chegar à sala e ver pessoas que estariam sempre lá. Precisaria de ter mesas grandes feitas de madeira antiga, próprias para grandes noites de cerveja e risos e ir dançar quando houvesse Sisters (e Sisters haveria sempre). Precisaria de cantos, de lugares mais sombrios, de mesas pequenas e de lugares para estar sem fazer mais nada. Talvez ao balcão devesse estar um senhor igual ao Bela Lugosi, talvez uma menina saída de um filme da Sophia Coppola, virgem suicida que quisesse trabalhar pela noite dentro.
Pessoas iriam ver livros, pessoas passariam no bar. Não todas, claro, aos olhos de muitos a casa continuaria a ser uma casa que era uma pena não ser um condomínio de luxo, faziam-se ali quatro milhões. E eu conheço na Câmara os arquitectos certos. Não, nem todas as pessoas dariam por ela. Não seria preciso dizer "desculpe mas esse livro não é para si, vá antes comprar uma revista qualquer". Não seria preciso dizer "estamos fechados, vê aqui alguém com vontade de se abrir? Vá beber a sua caipirinha para um sitio onde haja gente tão feia como o seu coração". Não seria preciso dizer quase nada.
A música seria sempre a música certa, e ninguém perceberia como podia ser a música certa para várias pessoas ao mesmo tempo, escolhi bem o DJ não foi? Estou muito feliz.
(ah, pois. Os livros iam chegando ao alfarrabista como se fossem pássaros a bater na janela, os livros todo que eu sempre quis ler, o livro que alguém procurou. O bar teria uma coisa estranha, a toda a hora seriam lá duas e meia da manhã, fosse qual fosse a hora do dia cá fora. Sempre haveria alguém a dançar, sombras negras ao fundo da sala. Sempre haveria uma mulher que ainda há pouco foi beijada. Sempre haveria alguém calado do lado esquerdo do balcão. Mas o Bela Lugosi tem estranhos poderes, dizem que os verdadeiros vampiros também passam lá misturados)
Em cima, claro, uma casa minha. Só se chega lá por uma porta sempre fechada à chave, é preciso subir uma escada em caracol (a Casa das Belas Artes tem imensos corredores e escadas em caracol e até há um lugar onde se vê de vez em quando uma mulher de branco com um candelabro na mão, e não há porta por onde ela pudesse ter saído...) Não sei onde poria o mordomo, mas ele havia de encontrar uma solução. E também só o usaria para saber que chegou uma carta, para ele me lembrar que na quinta feira chegariam os hóspedes de longe, e que tudo estava já tratado. Seria uma casa estranha, eu divido-me e na Casa das Belas Artes teria finalmente espaço para mim. Queria um quarto que fosse como uma tenda de um emir do deserto, um quarto que fosse como o de um monge russo. Queria uma sala despida com grandes quadros do Rothko na parede e um sofá interminável. e uma sala com peças compradas em leilões, pinturas românticas de castelos alemães e de mares ingleses e mesas feitas para a prata antiga brilhar. Queria um quarto onde nunca entrasse, para saber que me faltava fazer ainda uma coisa. Uma cozinha com fruta e queijo e vinho e pão.
A Casa das Belas Artes havia de ser uma casa igual a mim, eu uma coisa igual a ela. Ao longe o Tejo, tão cansado.
[escrito em Setembro de 2005, publicado num grupo privado]
5 Comments:
Eu lembro-me. E continuo a gostar muito.
Claro que a casa gosta mais do Inverno. Apesar disso, conheço uma turista, precisamente turista de Agosto (mas não só turista nem só de Agosto) que lá foi guiada. E soube sentir a casa e esta também a soube, a ela. Mas foram muito bem apresentadas.
A casa tem dono, sente-se. É tua. E és tu.
Eu queria outra espécie de bar. Um bar e discoteca ao mesmo tempo. Caraças, até já tive, na Juke Box da rua da Fé e no Limbo.
Não eram estilisticamente perfeitos como descreves mas serviam.
Fazes bem em sonhar.
Quanto ao Outono e ao Verão, o segundo que este ano não houve, não tens nada de que te queixar. Provavelmente vamos ter calor em Fevereiro. Isto é tudo por causa dos homens terem ido à Lua e mexido no céu.
Há uma casa na R. Newton, em Lisboa… abandonada, três andares, janelas altas e de vidros quebrados, os umbrais um pouco art nouveau… Curiosamente, há uns tempos, olhava para ela fumando um cigarro, à porta de uma galeria em que não se pode fumar, e lembrei-me de ti (por causa da casa, a árvore à frente, os corredores e escadas que eu imaginei rangentes, muitas divisões com móveis grandes, estantes, camas antigas, livros, brinquedos em baús, álbuns de fotografia, o vento… os abismos do segredo humano.)
Moram gatos na casa, reparei, ou pelo menos passeavam em seu redor. E espíritos, com certeza. Os espíritos, que desertaram os caixotes de sufoco em que habitam os contemporâneos (comentava eu com uma amiga que vive habitada e habitando de poesia, e que também te lê).
O espírito de Jorge Luís Borges buscando o seu antepassado português, quiçá…
Abraço, Gold.
A zona da Rua Newton será um dos últimos refúgios dos espíritos, e dos gatos. Ainda bem que voltas com o Outono, Vitor. Abraço.
Gotika, não me queixei muito do Verão. Suponho que teremos chuva em excesso agora, mas logo se verá.
Pois, Fata, não só...
Tod@s fossem como aquela casa e estaríamos nós bem, não era? Sabes do que eu me lembrei? De uma conversa. Daquelas nossas conversas que, sem dares conta, me deixam a pensar nas mesmas palavras ou nas mesmas frases anos - e esta conversa já tem dois anos. A casa continua em remodelações mas com menos pressa, porque aprendi a não tê-la. Ainda não entendi tudo, mas também não é para entender pois não? Vou amando o terreno para não entender a construção.
Por enquanto, sempre por enquanto =)
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