27.6.04

"Onde estavam ontem os meus olhos?": meditação sobre a rapariga do outono, o porquinho que queria ser salsicha, e o sonho real dos guerreiros

De tal maneira é nítida para mim a "rapariga do outono" que me custa a crer que quem a pintou não tenha dado por ela. E fico contente por a termos encontrado nós. Mas...

Mas há uns tempos atrás, já não recordo quando, vi um anúncio na televisão: um desenho animado em que um porquinho "fofinho" estava muito triste... porque não conseguia ser salsicha para fazer as crianças mais felizes. As crianças devem ter adorado, e a empresa das salsichas aumentado os seus lucros. Mas eu digo que quem inventou isto devia ser fuzilado por alta traição à humanidade.

A rapariga do outono é real, sim. Está lá inteira. E do mesmo modo está, encontrei-a mais tarde, uma rapariga de saia azul, com o cabelo curto e um bébé ao colo, como se fosse a Nossa Senhora de Outubro - a saia é a mancha azul dentro da mancha de fogo das árvores da esquerda, alguém a vê?... Mas que isto não sirva para se dizer "quero lá saber do sofrimento do porco, quero lá saber que o rio ande poluído com os detritos da fábrica de salsichas; eu posso sempre ver o porquinho que queria ser salsicha, posso ver SÓ a rapariga do outono e a nossa senhora de outubro".

Cuidado com os sonhos, se os sonhos forem o ponto de fuga. Por isso os defensores dos animais, na América, diziam que talvez bastasse uma lei para resolver muitas coisas: que os matadouros tivessem de ter paredes de vidro. É isso, paredes de vidro. Para que a rapariga do outono não esteja a tapar o matadouro e a fábrica de salsichas, para que se perceba que uma anda ao lado da outra como o amor anda ao lado da morte. Como o sonho verdadeiro vive à luz da espada maior. E por isso não acreditem na "inocência" dos sonhos e não acreditem no desespero das feridas. Porque só os guerreiros realmente aprenderam a olhar.

E eu queria que tu fosses capaz de reconhecer a rapariga do outono e o rapaz da borboleta e a nossa senhora de outubro, mas também que visses todos os matadouros do mundo como se todas as paredes fossem feitas do vidro mais puro. Não desvies o olhar. Não feches os olhos, mesmo quando as lágrimas queiram tapar a cara toda. Não te distraias com as luzes. Não te distraias com os barulhos. Deixa a noite habitar o teu coração. Aprende a abrir o caminho com a espada dos sonhos. Aprende a receber as feridas do mundo. E em cada momento de estar contigo poderás dizer, diante de um novo amor como diante de uma nova morte: "Nasço outra vez! Onde estavam ontem os meus olhos?"