14.6.04

O quinhão que nos toca

Na noite tão grande gritou de dor, sou tão pequena, e nem um anjo desceu para a confortar. Na noite tão grande gritou ao meu lado, e acordei para aqueles olhos azuis imensos muito abertos, e havia sangue nos meus lençóis, e ela tão calada só o grito, e a seguir a estupefacção da carne morta. Tenho sono, pensei. Mas ele está morto. Coitadita, o que faço contigo?

Na noite tão grande gritou sim, e é verdade que os gatos são tão pequenos. Não pude fazer grande coisa. Estive ali, tempo atrás de tempo, junto da gata que veio à minha cama pedir ajuda, mas não sei dar vida a gatinhos mortos. Era a manhã de Sábado, a primeira ninhada. Nunca tinha visto uns olhos assim. Nunca mais me digam que não se podem sentir as asas da morte. Nunca mais me digam que somos muito diferentes. E com a noite voltou o sofrimento dela, e foi esta a minha noite de Santo António. Não fiz muita coisa. Estive ali. Junto de quem confiava em mim absolutamente, junto de quem nos momentos piores não desviou de mim os olhos azuis. Dois gatinhos morreram ao nascer. Não sabia que um parto podia durar tanto. Mas agora tudo passou, e junto a mim tenho uma bolinha preta e branca que até agora se recusou a morrer. Sou responsável por mais uma vida, eu que nunca soube tomar conta de mim.

É o mesmo o destino dos filhos dos homens e o destino dos animais; um mesmo fim os espera. Como a morte de um, assim é a morte de outro. […] Todos vão para um mesmo lugar. Todos saíram do pó e ao pó hão-de voltar todos. Quem sabe se a alma dos filhos dos homens subirá às alturas, e a alma dos animais descerá ao fundo da terra? E reconheci que não há felicidade maior para o homem do que alegrar-se com as suas obras. Este é o quinhão que lhe toca.”

Eclesiastes (um dos livros da Bíblia) 3:19