Lembro-me tão bem de a ver a primeira vez, camisola de lã e saia curta e uns olhos que diziam desisti de fugir e o que interessa está sempre um bocadinho mais além. Parecia tanto que estava ali porque sim, tão frágil, agarrada ao namorado quase pousada nele, tanto que olhei o rapaz para saber por ele se estariam tristes e as mãos dela estavam agora nos bolsos. Parecia aquelas bonecas de pano que só se seguram sentadas e ficam a olhar com olhos grandes, seriam as meias às riscas vermelhas que lhe davam ar de brincar, mas os sapatos castanhos rasos davam-lhe era ar de gostar de cinema e de saber muito bem quem é a Sandrine Bonnaire, parecia vestida aos bocadinhos e desisti de fugir diziam sempre os olhos grandes como braços caídos. Lembro-me tão bem, eu estava a folhear um livro da Ana Teresa Pereira a Linguagem dos Pássaros, e eles pararam no Jack London mas não, era um livro verde ao lado que já não pude saber.
Bonecas de pano eram as cores dela, castanho e preto e vermelho, mas as bonecas assim quase sempre têm tranças e esta tinha o cabelo cortado curto da cor do mundo ao pôr-do-sol e reparei que no meio do pescoço o cabelo se afastava como se ali estivessem estado as mãos dele e ele disse vamos embora mesmo ao meu lado e ela nem respondeu, começou a andar. Tão frágil e os ombros magros, quase pousada em daqui a bocadinho quase ainda não.
Voltei a vê-los depois mas foi à noite e no Bairro e as meias às riscas sapatos ajuizados foram as primeiras coisas que me encontraram e percebi que se agarrava àquilo de que gostava como se tivesse medo de cair, sempre quase pousada nele e talvez falasse a linguagem dos pássaros. Depois ele trouxe cerveja e ela aceitou e ficou à espera que ele pagasse, e não olhou ninguém nem sequer o copo, parecia à espera que chegasse daqui a bocadinho ou que chegasse outro sítio qualquer. Saíram do bar, tão frágil, e eu fui ver onde iam olhos tão grandes e estavam sentados na rua, ele ria e falava e talvez acendesse um cigarro e ela tinha o copo cheio como se nem tivesse dado por isso e olhava em frente à altura das minhas mãos.
Gostava de ter parado para a ver como se pegasse numa criança ao colo, ver se o cabelo ainda estava separado atrás e se a pele era tão branca como me tinha parecido à luz da FNAC com as veias tão lá ao fundo, ver o que havia no saco castanho que ela abraçava como se tivesse lá o resto da linguagem dos pássaros. Gostava de ter perguntado porque é que os teus olhos são tão grandes se não queres sorrir e em pequena aposto que tiveste tranças e te rias com a cabeça deitada para trás o que aconteceu? Deixa-me ver devagar as tuas mãos, sabes, quando as pessoas se calam é nas mãos que choram as coisas do fundo.
Gostava de ter perguntado sim. E gostava de a não ter voltado a ver, não há coincidências, sob as colunas de pedra tão negras à volta, era uma quarta-feira acho eu, e de repente era ela tão frágil quase pousada na pedra quase pousada na escuridão e com uma amiga, seria amiga ou seria não ter o namorado deve ser isso pela maneira como ela agora olha para o copo e para toda a gente como se quisesse dizer eu agora estou aqui mas esqueceste-te como isso se faz, não é? E depois outra vez, agora era uma terça-feira, noite de Pixies dizia o cartaz, e de repente na mesa do fundo ao meio lá estava quase pousada e claro era o preto vestido e eu também (ela tão frágil) e onde te esqueceste das meias às riscas e da vontade de brincar mas sempre os sapatos ajuizados que ali pareciam dois bocadinhos de tarde perdidos na noite. Noite de Pixies por fora, noite quieta em mim e de beber nela e dançar sozinha mas aquela não era a música certa. Não era, porque na mesa estavam mais dois com ela mas esses só tinham olhos um para o escuro do outro e ainda um rapaz de óculos que dançava imenso e ela sentava-se como se fosse sozinha e na música a seguir ia dançar no mar das colunas negras para ir ficando assim como se a música estivesse a acabar, e sentava-se outra vez e acendia um cigarro como se fosse uma conversa.
Gostava de a não ter voltado a ver, olhos grandes que diziam desisti de fugir, desisti de ficar na música certa. Gostava de ter perguntado sim, a primeira vez que ouviste Pixies estavas sentada numa almofada azul quarto branco e eras e que coisas te fizeram assim ainda te lembras? tenta é muito importante tenta tudo mas não dances assim como se te tivesses ido embora quase toda, como se gritasses na linguagem dos pássaros noite branca tive tranças, como se fosses a vítima a seguir.
Senta-te aqui queria eu dizer, estou a ouvir-te, fala, não é tarde e não olhes assim como alma quase pousada no corpo, desisti de fugir desisti de fingir, com esse teu ar queria lembrar-me de acordar. Eu sei o que vais dizer, que há muito tempo escondido dentro de ti mas por fora não sabes o que há, daqui a bocadinho mais além. Ouve, agora falo eu, lembras-me um caderno de linhas por abrir e lembras-me o sabor dos bolos na escola e o banco de jardim onde uma vez ela me disse junto a ti percebo o Douro, podias sentar-te nele tão frágil quase pousada. Não dances assim. Essa é a dança de não acordar e eu compro-te meias às riscas vermelhas a cor que quiseres desde que tenhas vontade de brincar. Senta-te aqui era eu tão frágil, e com umas mãos assim deves saber desenhar e dentro de ti guardaste os sapatos ajuizados e perdeste as meias às riscas vermelhas mas é mesmo assim a vida e se te tocasse agora não era por mim, era ter a certeza de que a escuridão não passou por ti na FNAC e se esqueceu de compor esse bocadinho de cabelo junto ao pescoço. Se te tocasse era para te entregar a almofada azul.
Lembro-me tão bem de te ver a primeira vez. Lembro-me tão bem de tantas coisas. Não dances assim. Não deixes em mim esses olhos tão grandes, não deixes os meus andar em ti quase pousados. Gostava de fazer o teu desenho a lápis.
13.6.04
Um desenho a lápis
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