10.6.04

Sobre danças, cores e outras coisas menores

Ser é, antes de mais, ser incompleto. Olhar o mundo é saber a corda frágil que atravesso até cair nos abismos calados. E por isso vou trazendo para junto de mim as palavras e as cores e a música que me emprestam a forma ágil e me sustentam ainda um instante aquém do mergulho inevitável.

Ser é, antes de mais, ser desmedido. Olhar por dentro é saber o lugar imenso de asas que só podem ter sido roubadas. E por isso procuro sentir, e o cinzento se mistura em mim com a palavra cinzento e com aqueles sulcos frios que o violino me deixou e escuto as asas que doem como doem os membros amputados.

Ser é, antes de mais, soltar o grito amarrado. Olhar o tempo que sou é saber o grito que a eternidade me vai ser, a insensatez das coisas simultâneas. E por isso não me detenho a coleccionar o mundo à minha volta e a traçar mapas de trilhos que não levam a lado nenhum.

Ser é, antes de mais, beijar em ti a forma pura. Olhar-te é elevar o teu corpo ao mistério que o concebeu, sem saber dar por mim os passos firmes. E por isso aprendo a ver como se tudo estivesse aí desde sempre, e é verdade que a minha alma desde sempre foi.

Mas ser é, antes de mais, dançar a dança dos mortos. Olhar o que sou é refazer os traços dos ossos e da noite vagabunda dos ossos, e abraçar a marca que fizeram na neve estranha dos mundos maiores. E por isso me faço acompanhar da espada clara, que há-de bordar a ouro as letras do fim nas rosas mortas.

(com Tristania, Wasteland's Caress)