Rapazito era ele sim, grumete embarcado que não sabia da noite mais do que os olhos levavam, e que gostava das lendas do mar. Mas os seus olhos pareciam luas e morava neles a ambição da noite inteira...
E o mar, disse o mais velho, fez-se nessa noite a batalha mais alta. Talvez fosse ao largo de Lomond’hir. Há duas noites que não viam terra e o vento arrastara ao céu as cordas frágeis. As águas eram a muralha negra que os não queria deixar passar.
Sim, respondeu o mais novo. As ondas que são o escudo do gigante mar. O vento que é a sua espada maior. O trovão grito de guerra. Ah, gritou o velho, e a tempestade que sabe ser a cor mais terrível, a cor da morte a crescer. Há duas noites não viam terra, e o grumete de olhos de lua não parara um instante, nem um instante fechara os olhos e segurava nos braços o navio tão frágil como se fosse um filho doente. Duas noites com todos os homens iguais. Duas noites de fim. Houve quem fizesse em si a onda enrolada, e esses caíram como se fossem mastros a arder. Houve quem visse asas com garras a rasgar as velas e os peitos fortes e saltasse ao mar, como se houvesse ainda para onde ir. Houve quem se perdesse na maldição maior. Mas o grumete não caía. Corria o navio todo e olhava as mortes com os seus olhos de lua e tinha palavras de emprestar a força. Sim, duas noites e já tudo estava perdido.
E o mar também corria o navio todo, murmurou o mais novo como se não quisesse falar. Como se quisesse lavá-lo bem antes de a morte chegar. E também olhavam os homens os olhos tão abertos do abismo sem luz. E eram as águas da noite, e havia rochas mais duras que o destino dos marinheiros, mais cortantes que a maldição maior. E o navio inteiro gritava como se mãos fortes segurassem o seu corpo delgado. Sim, estou a ver o mar o céu. E a figura de pé, com os braços cruzados como se fitasse sempre o lago gelado.
E os cabelos de fogo, lamentou-se o mais velho, os cabelos que brilhavam na noite a abrasar as almas quebradas. Que eram a porta do inferno maior. Era ela nas rochas sim, a mulher que nos faz tudo estar perdido, e o grumete não sabia dizer se era um manto negro que tinha ou se guardava nos ombros as asas dobradas. E o muro das ondas era agora o véu que voltava ao seu rosto quieto e aos seus olhos terríveis de verde acordado. À volta dela passavam troncos gigantes que tinham sido mastros e troncos pequenos que tinham sido marinheiros, e talvez o grumete ouvisse a voz da Black-Cathie ou talvez ouvisse só o vento a cantar. E finalmente fechou os olhos, porque já não tinha ninguém para emprestar os restos da lua. Pensou como eram belas as lendas do mar.
A voz da Black-Cathie, disse o mais novo. A voz dela não era a do vento a cantar. E eu também fecho agora os olhos para a ouvir melhor, por entre as ondas do gigante mar e os troncos negros que passavam a galope como se fossem os cavalos do fim. Fecho os olhos para saber o momento em que o grumete os voltou a abrir e teve à sua frente o verde acordado. O momento, quis dizer o mais velho. O momento em que as ondas desceram como desce o véu de uma noiva a sorrir. Mas só pôde estender a mão para a garrafa de sempre, e o mais novo já não escutava. Sim, meu amigo velho, estende a mão para a garrafa tão perto, sente o seu frio como eu sinto a mão gelada que a Black-Cathie estendeu ao grumete de longe. Bebe calado e deixa-me sentir o véu a escorrer, como se o mar fosse agora a noiva do mundo. Deixa-me saber esta história pelos olhos de lua do grumete e pelos olhos do verde acordado que o beijou.
E o mar há-de ser também um dia a minha noiva acordada, pensou o mais novo, há-de ser a minha noiva viúva. Porque foi no mar que eu nasci, e os corsários me baptizaram em água salgada e em sangue francês que a minha mãe consagrou, bruxa do mar. E eu ainda ouço o grito de guerra dos corsários de negro, ainda ouço o seu oiro a brilhar. Longe agora o equador, longe então os rochedos de Lomond’hir. As terras do sol que brilhava como longe brilhavam só os cabelos nocturnos da Black-Cathie. O vampiro do mar. Sim. Um dia eu hei-de ser as almas mortas.
Dizem, resmungou o velho, dizem tanta coisa e diziam mais os que nem sequer souberam morrer. Dizem que no momento em que o grumete abriu os olhos era música acima das ondas, e no fundo passavam sombras de prata a dançar. E as águas abriram-se na floresta de mastros que eram afinal cruzes guardadas, navios naufragados desde a primeira noite do mar.
Abriu os olhos sim, os olhos feitos de lua roubada e o corpo branco do grumete estava intacto como se a lua o cobrisse. E à sua frente era o manto negro e era a mulher dos cabelos de fogo que parecia ter asas dobradas. E a noite feita maior.
Sorria alto a mulher de luto, e dos seus lábios saíam as palavras geladas, chegaste outra vez. Porque eu o ordenei ao gigante mar, porque eu fiz esta história parar. Ninguém traz ao mar os olhos de lua roubada sem fazer com que tudo esteja perdido, e por isso mais vale fazer de ti flor de carne a esmagar, mais vale espalhar um rio de rosas vermelhas pela inocência do teu corpo tão branco. Olha para mim e sente a minha boca como se as lendas te entrassem no coração. Porque eu sou o vampiro do mar, e o mar nunca soube de uma sede maior.
Mas o grumete olhou a mulher com os seus olhos de lua, e estendeu a mão intacta até lhe tocar os lábios que eram rosas carnudas e os cabelos que eram o fogo mais frio. Tocou-a devagar como há muito tempo a tinham tocado as águas de Lomond'hir e antes delas uns olhos que não sabiam morrer e as sombras que eram um castelo por dentro.
O vampiro do mar, disse o grumete, e as suas palavras eram a prata dos dias. Em ti brilhou já o ouro dos elfos. Em ti andou uma alma a esmagar. Foi por isto que eu lutei com o gigante mar. Foi por isto que houve duas noites e os homens iguais.
Amigo velho, disse o mais novo. Isto não pode continuar.
(continua)
9.6.04
A Senhora da Rocha (III)
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