7.6.04

No palácio de meu pai Cassandra me chamaram...



(pintura de Dante Gabriel Rosseti: "Beata Beatrix")

(Parte I)

A Senhora da pintura não é Cassandra a princesa de Troia mas podia ser. Repara bem nos seus olhos porque nunca viste uns olhos tão abertos, a ver tão longe e tão fundo. Parecem cegos aos que não sabem olhar.

No palácio de meu pai Cassandra me chamaram, e era Cassandra a filha de Príamo rei. O rei de Tróia, a dos muros altos. E nunca ninguém tinha visto uma beleza tão pura, uma beleza de roubar. Por ela se enamorou um dia o deus Apolo, o deus da luz de quem é tão difícil aos homens desconfiar. A princesa sabia que para tanta luz não era feita. Mas Apolo concedeu-lhe o dom da visão, em troca da promessa de fidelidade: ver as coisas, e as coisas que há para além das coisas. O dom da profecia, a verdade toda à frente dos olhos. O dom? The curse? É que nos olhos de Cassandra passou a entrar o mundo todo, e para isso deles tinham de sair mais lágrimas do que as que nos seus olhos cabiam. E a princesa suplicou ao deus a libertação.

Há outras coisas, outras lendas. Há a violação de Cassandra por Ajax-o-Grego, a sua morte às mãos de Clitemnestra, a esposa ciumenta. Mas há, principalmente, o resto da história dos seus olhos de cegar: os deuses intimaram Apolo a que a libertasse, mas a luz não gosta de nos largar. E Apolo transformou o presente das núpcias quebradas: Cassandra continuaria a ver, mas o que ela via nunca mais poderia ser dito em palavras que os homens entendessem. Não mais os avisos, os conselhos: apenas por dentro o mundo todo, e por fora esse olhar cego que quase não vês.

E por isso Cassandra, a filha de Príamo Rei, se tornou para os Gregos o símbolo da tragédia maior, que é afinal a vida de cada um de nós: sabemos o que vai acontecer, mas só podemos ver o que acontece.

(Parte II)

Sabemos o que vai acontecer, mas só podemos ver o que acontece. E agora vou falar para a Cathie laBlanche, e vocês os outros todos podem ler mas isto não é para mais ninguém.

Às vezes vemos qualquer coisa à nossa volta, e então dizemos que não há coincidências. Outras vezes sabemos que vai acontecer qualquer coisa mas não sabemos o quê. Sabemos é que é preciso ficar à espera, ficar ali como se isso pudesse ser o combate maior. Calhou de estarmos a olhar com os olhos de dentro. Mas às vezes aqui é muito longe e não sabemos sequer o que acontece.

Agora sei porque me assustaste, e porque é que o branco sabe ser a cor mais terrível. Tem cuidado com a noite que chamas. Tem cuidado porque ela gosta de responder, e aí será tarde para não morar. É cedo para tantos traços, mesmo que sejam feitos pelo luar. Porque a noite mora em todo o lado, mesmo nos sítios onde não anda ninguém. Digo-te eu, que sei do que a noite é feita.