1.6.04

A Senhora da Rocha


(pintura de John Waterhouse - A tempestade)



Sim, disse o mais velho. E vi-a como te estou a ver agora, erguida nas rochas como se estivesse à espera, de braços cruzados como se no seu peito calasse uma noite maior. Mas nessa altura já estava tudo perdido.

A Senhora da Rocha, murmurou o mais novo, e estremeceu como se o rum o não tivesse aquecido. O Ferreiro falou-me dela. Pensei que era uma lenda do mar.

O mais velho olhou devagar as mesas vazias, e a sua mão estendeu-se para a garrafa acabada. Não vêem quando um homem tem sede? Quem não entende a sede não merece viver. A Senhora da Rocha sim, e os marujos do Triumphant já lhe chamavam a Black-Cathie quando andava eu na tua idade. Quantos anos tens, rapaz?

Dezasseis pelo São Lourenço, pensou o mais novo. Vinte, disse muito depressa. E pegou no copo vazio como se beber fosse coisa de grandes.

Vinte, repetiu o mais velho... Assim moço eu era quando me embarquei nesse navio embruxado, e o capitão Lawrence que Deus tenha era talvez o único que a tinha sabido ver duas vezes com aqueles olhos que pareciam luas. Havia um homem em Veneza que tinha dado a terra depois de a Cathie lá estar, mas nunca teve alma de voltar ao mar e andava com os padres na festa de San Zanipolo...

Mas quem é a Black-Cathie, perguntou o mais novo, e estremeceu um pouco. Quem era antes de estar ali nos rochedos, ali como se fizesse a noite maior. Uma alma que ficou no mar. Porque ela aparecia quando tudo estava perdido.

O mais velho puxou a garrafa aberta que o homem alto tinha vindo trazer. Encheu os copos e ficou a ver o líquido como se nele lesse a história que ia contar. E hesitou, porque os homens do mar não gostam de falar disto depois de a lua se erguer.

Dizem que a Black-Cathie era a filha do dono de um castelo que ficava atrás dos rochedos, e que era linda como as rosas vermelhas que todas as manhãs lhe enfeitavam o quarto, linda como os amores. E de amores perdeu-se um dia por um estrangeiro que o pai recebeu, um homem vindo de montanhas longe que diziam que era conde e diziam que não sabia morrer. Cathie laBlanche se chamava então, e desde que chegou o estrangeiro não teve olhos para mais ninguém, e todos os dias dava ordens para que trouxessem mais rosas e todos os dias saía sozinha e passeava pelos bosques e ia até à lagoa de Lomond'hir como se soubesse que o havia de ver. Diabo de mulher.

O mais novo endireitou-se, e os seus olhos brilhavam de rum e brilhavam também de coisas que não tinham nome. Cathie laBlanche. Um dia também hei-de chegar de longe, pensou. Hei-de chegar numa carruagem negra e hei-de levar uma capa bordada e à minha espera hão-de estar uma mulher e as rosas, rosas vermelhas que parecem feitas de carne a esmagar.

E o conde encontrou-a, disse ele de repente, como se a bebida lhe tivesse dado voz e como se tivesse já contado aquela história noutras noites iguais. O conde encontrou-a numa noite em que o nevoeiro desceu mais cedo e em que a Blanche não pensava em voltar. Pensava nas rosas, e pensava na lagoa negra lá em baixo, e no castelo frio em que a noite era uma noite por dentro. Pensava em carne a esmagar.

E foi a vez de o velho estremecer.

Razão tinha o maltês, diabo de moço. És bem o filho da bruxa do mar. Disse, e olhou o mais novo como se nos seus olhos abertos estivesse ainda o cabelo ruivo da mulher que acompanhara os corsários e que os chegara a comandar quando tinham vindo os franceses de Trinidad e nem um só voltou à France maldita. A bruxa do mar.

Diabo de moço, repetiu. Topou-a sim o conde, e topou-a quando a Cathie tinha já deixado murchar as rosas do quarto e dizem até que o espelho grande se quebrara e nem uma só vez os seus olhos se tinham cruzado. O conde não falava as línguas cristãs, e fechava-se com o dono do castelo nas caves fundas e deus sabe o que lá sucedia. Dizem que uma vez os viram à noite a levar uma caixa grande, e diziam que era ouro do mais puro e que o tinham ido a enterrar, mas diziam também que a caixa grande estava vazia e que de dia ninguém tinha ordem de subir à torre e nesse ano dois carneiros apareceram degolados junto à cruz grande e o filho mais novo do pastor sumiu e não souberam mais dele.

(continua)