28.5.04

Verdade: a Paixão dos Homens

Há duas coisas que qualquer pessoa sabe: a Idade Média era a época das trevas, os católicos são os aliados da mentira maior. E é verdade que uma coisa não anda sem a outra.

Vem isto a propósito, não de um filme (a "Paixão de Cristo"), mas de um comentário que eu comentei. Dizia assim: "Gibson narra a história (...) segundo uma perspectiva muito redutora. (...) O Jesus sinónimo de amor não aparece no filme (...). Gibson é fascista porque acredita ser aquela a verdade e nenhuma outra (...)."

Já não me recordo se comentei aqui que nos dias em que o filme estreou ouvi, num restaurante, o comentário último: "É o que dá deixar os católicos falar sobre Cristo. Afinal, já havia o Jesus Christ Superstar, para quê mais filmes?".

Eu penso que são os enamorados que melhor nos podem falar da paixão. E portanto que talvez os católicos nos possam falar da sua fé (para falar da fé budista, prefiro ouvir o Dalai-Lama). Penso, também, duas coisas muito simples sobre a primeira parte do comentário que comentei (e já vou dizer como o comentei): primeiro, não sei o que seja uma perspectiva não-redutora de uma história: as pessoas que pensam como o Dan Brown, autor do livro "O Código Da Vinci", por exemplo, pensam que não houve morte nenhuma, e que Jesus viveu feliz casado com a Madalena. Outros pensam que achar que os sacerdotes hebreus intervieram naquela morte é pecado mortal de anti-semitismo (normalmente os mesmos que, quando se fala de um padre pecador, dizem "os católicos são todos isto e aquilo"). E outros ainda, se bem o compreendo, pensam uma coisa muito estranha. Pensam que aquela pessoa era o deus vivo, e que a morte dele matou a morte e deu a todos nós o caminho para uma vida maior. Muita gente pensa muita coisa, e se eu quiser fazer um filme fico com o drama do Oliver Stone no "JFK": qual das cinco mil teorias sobre a morte de Kennedy vou seguir? Ou faço um filme que diga que há cinco mil teorias? Mas só haverá mesmo cinco mil? Meu deus (desculpem, meu ser humano cheio de dignidade), como é que eu faço uma coisa que não seja redutora?!

É verdade que o realizador Gibson escolheu contar a mais estranha das cinco mil histórias possíveis. Aquela em que a morte é vivida (inteiramente), sofrida (como nenhum homem poderia suportar sem morrer muito antes, coisa que muita gente que viu o filme notou - e bem) e livremente consentida (diz Maria, a sua mãe: "até quando permitirás que te façam isto?"). E portanto, não havendo beijinhos, tudo aquilo é uma prova de amor. É uma história quase incompreensível. Mas é fascismo acharmos que as histórias absurdas devam ser proibidas.

E portanto podemos agora ir ao ponto essencial. Gibson é "fascista" porque acredita numa verdade. Fascismo é uma palavra estranha, mas não me importo nada de a usar assim. Eu sou, pois, fascista, visto que acredito em verdades. Acredito, por exemplo, que é verdade que o mundo existe. E não me interessa ler, ouvir ou pensar em argumentos contrários. Se um dia fizer um filme (deus me livre) afirmarei com o meu filme que é verdade que o mundo existe. Prendam-me se quiserem (de preferência numa prisão que não-exista, claro).

Mas os que pensam que não há uma verdade pensam o quê? que é verdade que não há uma verdade? (fascistas...) que, se não há uma verdade, não pode ser verdadeira a sua crença de que as coisas de Cristo não foram as que o Gibson contou? É complicado pensar assim. Mas se a lógica te incomoda, grita pela revolução e pela beleza da revolução e proclama a ilegalidade das amarras do pensamento frio.

E agora vou falar do meu comentário a este comentário. Foi outra vez por causa do amor ausente, e das coisas outras que vieram por acréscimo. Há uma frase que é um dos três ou quatro momentos centrais do filme. Jesus ferido e carregando a cruz encontra finalmente a sua mãe desolada. Ela, em silêncio, procura confortá-lo. E ele sorri no meio do sangue (sim, muito sangue) e diz "Vê, Mãe, como eu redimo todas as coisas". E o meu comentário foi "terás dado por esta frase? ou o teu fascismo não a deixou ver?".

No que eu me meti.

PS. Parece-me que devo indicar o sítio onde deixei o comentário fatal. Neste momento não tenho comigo as instruções, ou lá como se chamam, para criar um link. Mas o endereço é: noctivago.blogspot.com.