2.6.04

A Senhora da Rocha (II)

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E então foi a vez de o mais novo olhar à volta, como se contasse ver alguém. Mas as mesas continuavam vazias. E de repente sentiu saudades do mar.

Sim, dizem que o conde a foi encontrar, disse o mais velho. Dizem que naquele dia ela tinha saído muito cedo, ainda o castelo era as brumas por fora e ainda o castelo era as sombras por dentro. E era também o sabor das rosas esmagadas, porque esmagada estava então a alma de Cathie laBlanche.

Um vestido branco cobria-lhe de luto o corpo delgado, e luvas compridas beijavam-lhe as mãos assombrosas. E havia um anel forjado em prata dos elfos, e talvez uma pulseira com dragões, e um colar de pedras finas, vermelhas como o fogo que dentro dela andava. E quando saiu andava mais depressa que a luz que descia do ar, e como as folhas no vento foi andando e andando, sem parar na clareira do bosque e sem parar nas fontes tão frescas, e andou como se não fosse da terra e como se alguém estivesse no fim à sua espera.

E claro que havia alguém à espera de Cathie laBlanche, disse então o mais novo, como se falasse sozinho e como se se fosse levantar. Porque no fim havia a noite e os braços densos da noite, a noite que despe as almas cansadas e que fez dela a Black-Cathie do coração de rocha e dos navios em que tudo está perdido. Mas foi o conde que a encontrou.

E um dia, pensou então, hei-de também seguir a noite das almas cansadas. Talvez quando o mar me quebrar, como se quebraram os navios da Senhora da Rocha. Mas eu hei-de andar sem parar e sem olhar para trás, mesmo ao encontro do frio que espera. E o vento há-de aprender o resto da minha história, e há-de ser uma história grande, uma história de gritar. Porque eu sou o filho da bruxa do mar, e dizem que o mar nunca soube de um fogo maior.

A Cathie andou, continuou o outro, andou até chegar à lagoa escura, ao lago triste de Lomond’hir. Dizem que as suas margens já viram as fadas dançar, e já viram outras coisas que nenhum homem pode saber e continuar de olhos fechados. Dizem que é um lago mais velho que o mar. E em Lomond’hir ela ficou, e de pé olhou as águas, com o seu colar tão vermelho e o seu vestido tão branco, e os braços cruzados no mesmo gesto parado com que agora espera os navios do fim. Ali ficou e fitou as águas, e o que viu nas águas talvez fossem as asas de um corvo ou talvez fosse a sombra de uma cruz descida. Ninguém sabe quanto tempo passou, e dizem que talvez não tenha sido uma noite, mas todos os séculos dos séculos. Mas no instante da última luz abriu os braços como fosse abraçar as trevas e como se o seu coração se partisse. Abriu os braços, e dizem que mesmo o lago velho nunca vira uma beleza tão grande como a sombra branca de morte de Cathie laBlanche, a fada do coração de esmagar.

Ah, mas Cathie laBlanche lhe disse então uma voz atrás dela, e o branco parou como se toda a morte hesitasse. E antes até de ela olhar foi ali o gesto incerto, e uma capa bordada a ouro misturou-se com o branco do vestido branco, e duas mãos fortes seguraram o corpo esguio como se não houvesse mais nada e os olhos do conde eram mais frios que as águas do lago gelado de Lomond’hir. As pedras do colar desfizeram-se nela como se fossem a rosa esmagada. Estava tingido de sangue o pescoço de Cathie, e o sangue dela era outra vez a terra dele, e o verde dos olhos dela dava à sua boca o gosto amargo de beber o último verde do mundo.

E o mais velho olhou com raiva para a garrafa que se tinha acabado. Diabo de mulher, diabo de sede. E esta história está longe de acabar.

Ainda agora começou, respondeu devagar o mais novo, e fingiu não reparar que o outro fazia o gesto de chamar outra vez o homem alto que os servia. Porque todas as histórias se desfazem em nós como se desfazem as pedras finas no sangue de Cathie laBlanche, e é por isso que eu gosto do mar. O sítio onde as histórias não chegam ao fim, mesmo quando tudo está perdido. Bebe, meu amigo velho, bebe outra garrafa para que o rum seja em ti o gosto amargo que também entrou na boca do conde. E conta-me o que disseram as suas mãos, o que sentiu a capa bordada. Continua. Conta-me o que viu o lago velho, na noite em que o branco foi tingido e em que a noite ouviu uma voz atrás dela.

Dizem, respondeu o mais velho, e ficou calado muito tempo. Dizem coisas mas ninguém pode saber o que aconteceu ali. Nem mesmo o capitão Lawrence, o único homem que viu duas vezes o rosto inteiro da Senhora da Rocha, nem mesmo a tua mãe, e o mar nunca soube de um fogo maior que o dela. Sabes como é. Dizem uns que Cathie gritou, e que o lago recolheu o vestido branco como uma vela deitada ao mar. Dizem outros que as águas ferviam, e que nesse instante a torre do castelo se rasgou como se rasgava a carne dela, para que ninguém pudesse ver a caixa vazia que trazia o conde dormido. Dizem que a pele do conde era branca como a neblina da manhã, e que por ela subiram rios de rosas, rios feitos de sangue a esmagar, feitos do coração e da vida de Cathie laBlanche. Dizem que ele a roubou, e que por isso o verde não voltou no mundo a ser o mesmo. Dizem que o pai dela sabia de tudo, e que afinal foi o seu manto que desceu às águas e que ainda hoje se não deve passar no lago velho depois do escuro. Dizem que o conde pronunciou palavras que não são de bocas cristãs, e que essas palavras lhe abriram as feridas do corpo mas lhe sararam na alma a ferida maior. Dizem que no fim os dois ficaram quietos como os primeiros amantes do mundo, e que o sol demorou mais que o costume a encontrar os caminhos de Lomond’hir. Mas ninguém sabe o que realmente aconteceu.

O homem alto trouxera outra garrafa, e nos seus olhos havia uma inquietação vaga, como se aquela conversa não devesse ter nascido ali. Mas o mais novo não fez caso dele.

O branco, disse o mais novo, sabe ser quando quer a cor mais terrível. E quando quer é a nós que nos quer, como se fosse em nós uma canção perfeita. Lembro-me do mar branco das viagens do norte, quando entrámos nas terras do frio, e lembro-me do branco dos mortos na viagem em que a peste andou embarcada. Lembro-me das rosas brancas da ilha sem nome.

(e lembro-me da pele branca da minha mãe, pensou mas não disse nada. Catherine Blake, a bruxa do mar. Era um branco que ardia em mim como ardiam por ela os corações bravos dos corsários. Um dia hei-de ter o meu navio, hei-de cruzar os mares com uma espada de sangue e uma capa bordada a ouro. E o meu navio há-de ter as velas brancas como as terras do frio, e há-de ser de um branco de assustar, e só a minha bandeira e o meu coração serão negros como a alma morta da Senhora da Rocha. E o mar nunca há-de ver um fogo maior.)

E posso imaginar o branco inteiro nas margens de Lomond’hir, continuou. Mas ainda não sei da Senhora da Rocha, e eu pensava que era uma lenda do mar. Falaste-me de um vestido branco e do primeiro sangue e dos amantes que não deixam o sol separá-los, mesmo que seja o ouro dos elfos. No entanto a Black-Cathie usa um vestido negro quando aguarda de pé os nossos navios tão frágeis. Quando manda as histórias chegar ao fim.

A primeira vez, disse o mais velho, e falava mais baixo como se tivesse medo do que ia dizer, o capitão Lawrence era apenas um rapazito.

(continua)