21.6.04

Amanhã

Amanhã é em português uma palavra triste. Porque amanhã quer dizer que os mares incertos do futuro vieram ter connosco como se fossem as primeiras ondas. "Amanhã se verá" e quer dizer que hoje já não sei, "amanhã farei" e quer dizer que hoje já vou cansado. Penso que são os pais que ensinam a história aos filhos pequenos, "hoje não te dou chocolate. Amanhã." E amanhã quer dizer esperar. Talvez ela amanhã goste de mim.

E por isso em português - porque em português ficamos sempre na beira-mar das coisas - o "amanhã" é desesperadamente compensado pelo "momento". "Vive o momento, vive cada momento como se fosse a loucura triangular do espaço azul com anjinhos lilases a piscar os olhos". Vai buscar as energias positivas e as luzes e distrai e principalmente não olhes para amanhã, porque amanhã não sabemos o que vai ser. "Aproveita" o momento, porque "amanhã" a alma terá passado o prazo de validade.

Não, de facto não gosto de anjinhos lilases, e a energia positiva faz-me mal. Quase todos os meus momentos são inteiramente desaproveitados, e por isso lhes posso chamar momentos livres, mesmo quando ando a trabalhar ou ando fechado por dentro. Por isso não me alegro com os "momentos" de sol que o Verão terrível talvez traga. Por isso não aprendo nada, e não esqueço nada. Guardo e aguardo. Por isso o meu espaço é o tempo inteiro, e todos os milénios são próximos da minha memória. Em mim o mar não começa amanhã, ando desde sempre no alto-mar da vida (estranhos passos) e em cada noite vejo as estrelas caidas da noite do fim.

Talvez por isso não faço na vida muita coisa, mas sou na vida muitas coisas. Talvez por isso um dia regresse a casa. E talvez seja isso tudo o que podemos esperar.