Não vos admireis com isto: vem a hora em que todos os que repousam nos sepulcros ouvirão a sua voz e sairão. (Evangelho de João, 5:28)
Este Sábado passei-o com Diamanda Galás, e foi um Sábado como nunca tinha tido. Defixiones. As ordens dos mortos aos que ainda se crêem vivos. A última - e a maior - obra da maior de todas as vozes. Com ela passei o Sábado de Trevas, e não sei se a cheguei a ouvir. Diamanda não se ouve. Se tens ossos e sangue e carne eles ouvi-la-ão por ti, onde quer que a tua cabeça ande. E percebes que neste mundo a morte tem de ter um rosto e um nome, e que a insuportável presença da morte nos diz que isto que em nós chamamos vida não é a Vida.
Este Sábado passei-o com Diamanda Galás, e há muito tempo que não sentia os olhos tão abertos. A morte prende os que não a querem enfrentar.
Meditação para o tempo das trevas
Na Sexta Feira à nona hora tudo acabou. Consummatum est. A cruz ergueu-se no coração do mundo. Sobre os mortos estende-se agora mais um morto, sobre o sangue derramou-se sangue outra vez. Um homem chamou pelo seu Deus e como sempre os anjos não desceram a libertá-lo. Porque me abandonaste? Chegámos ao fim da história, a mesma história terrível que se conta desde o momento da fundação do mundo. Morte. The end. Nada.
E agora? Agora, se quiseres e só enquanto quiseres, a proposta mais espantosa que alguma vez foi feita, e não interessa quem a fez, a proposta de continuar a história e de ver neste fim o mais alto princípio. E aprendes que tudo, mas tudo mesmo no mundo é um princípio que não sabes como vai ser. É um absurdo? É sim. O que te propõem é fazer do absurdo a tua crença, do incompreensível a tua certeza, do invisível os teus olhos.
Mistério, claro. Diz o João Bénard da Costa: Os mistérios só são mistérios porque ninguém os percebe e porque é estulto aquele que os tenta perceber. Cristo na Cruz, para qualquer cristão, é um mistério. Mas Cristo ressuscitado também. E, na esfera do mistério, não cabe o maior nem o menor. Quando não percebo, não posso perceber o tamanho do que não percebo. Se abro a porta para uma escuridão total, nunca poderei saber se essa escuridão é imensa, ou atravessável em sete passos. A não ser que me enfie nela, o que não posso fazer, pois que não tenho sustentação possível.
Não temos sustentação possível, não. Mas não é a morte sempre insustentável? Então a escolha abre-se diante de ti como o abismo. E a escolha está junto de ti, mesmo que feches os olhos. Vou-vos dizer um mistério, diz S. Paulo: nenhum de nós morrerá, seremos transformados. A morte foi submergida na vitória. Ó morte, onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão?
Não sei se esta história é verdadeira. Não vi, não toquei, não senti, não morri ainda. Mas sei que esta história faz do mundo uma história sem princípio nem fim. A morte é tudo o que há no mundo. Mas uma parte de mim não é daqui, não é do mundo. E se eu, que sou feito de erro e mentira e morte e trevas, posso ver isto, como será o esplendor da verdade?
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