9.4.04

Eu, Deus e Memnoch o Demónio (I)
(só um cheirinho, que hoje não dá para mais)


Cinco coisas antes do resto

1. Tenho andado triste como a noite. Pela primeira vez só consegui escrever quando pus o fundo do écran a preto (Lá estou eu com as cores). E não vou sequer tentar dar a volta ao texto e transformar isto em coisas bonitas.

2. Há um livro chamado Memnoch o Demónio, de Anne Rice. Se o não leste, lê o que a Gotika escreveu no blog dela, aqui. É por causa do que a Gotika disse do Memnoch, e do que o que o Memnoch disse da Gotika, que estou aqui a dizer estas coisas.

3. Não interessa o que penso disto tudo, ou seja, o facto de eu acreditar em Deus, nas teorias da Anne Rice, ou até na teoria dos ovos azuis é absolutamente irrelevante como argumento (conhecem a teoria dos ovos? nos anos sessenta na América havia um iluminado que escrevia uns livros terríveis: nós na realidade somos ovos azuis com antenas, o resto é alucinação nossa. E de facto, conseguem provar que isto está errado?). Mas, só para perceber desde já: eu acho que Deus nos faz uma proposta, e fá-la por meio do seu filho o Cristo. A todos, não só aos católicos. Acho que os católicos (na grande maioria) não perceberam isto. Acho que os padres católicos (na sua maioria) não perceberam de todo, ou fingem que não perceberam. Acho que muitos que desconfiam da Igreja Católica (como se diz no livro Memnoch, muitos dos que já não estão na fase de ignorar Deus, mas na fase de o odiar) sentem que tem de haver uma proposta, para que o mundo não seja um manicómio. Uma proposta séria, mesmo que fosse uma proposta difícil. E penso que Deus gosta muito dessas pessoas. Embora na realidade lhes faça uma proposta, esteja à espera de que a aceitem e saiba que, se a aceitarem, deixarão de ter razões para o odiar. Ou seja, gosta de nós mas não nos quer assim.

4. Quando se fala de Deus do ponto de vista católico toda a gente acha que já sabe o suficiente. Falam de avós, de mães, de padres, de catequeses. Às vezes foram até ler a Bíblia. Poucas vezes leram mais coisas (também é verdade que encontrar bons livros católicos é mais difícil que encontrar uma agulha num palheiro). E depois começa a confusão. Se começarmos a ler descobrimos coisas espantosas. Se começarmos a pensar no que lemos com o coração e não só com a cabeça (afinal é isso que fazemos quando nos apaixonamos) acontecem coisas mais espantosas ainda. Mas nós queremos o milagrezinho. Queremos a prova definitiva, com manual de instruções cheio de bonecos. No tal livro "Memnoch" aparece uma doida, que é apresentada como "santa", que vivia à espera do tal milagrezinho e que, ainda por cima, o recebe no fim. A Anne Rice pode ter andado na catequese, mas não faz a menor ideia do que é ser santo. É compreensível: o diabo não pode perceber o Bem, senão não era o diabo. Mas isto é uma longa história. O que eu quero dizer é que, a partir deste texto, vou dizer-vos o que é que os católicos na realidade dizem que são as regras do jogo. Isto vai ser aos bocadinhos, conforme puder e tiver tempo e for sabendo. E o que eu possa dizer não são coisas como "Deus existe porque sim", ou "sou tão esperto que descobri a verdade". Posso dizer coisas que li, e coisas muito sérias que vi, em mim e nos outros. Isto no entanto não é também um milagrezinho nem um livro de receitas. O que dizem os Evangelhos que Jesus Cristo dizia quando lhe perguntavam o que era aquilo tudo? Não se punha com grandes tretas filosóficas. Dizia "vem comigo e vê". Alguém foi?

5. Para pôr as coisas de uma forma que possa ser compreendida por todos, eu não sou católico. Ainda não, pelo menos. Não aceitei as regras do jogo. Mas isso não quer dizer que fique calado quando me dizem que há batota. E é por dizer que há batota que estou zangado com o Memnoch (o do livro e o verdadeiro). Prefiro um satanista honesto que diz que Satanás é forte e que já ganhou a guerra, e prefere estar do lado dos vencedores. Aliás, a primeira afirmação é verdadeira e a segunda é quase. Para dizer a verdade, também estou zangado com o que aconteceu à volta do filme "The Passion". Há uns dias jantei num restaurante muito "espiritual", desses alternativos, e uma mulher na mesa ao lado dizia, sem ter visto o filme, claro, "não deviam deixar os católicos falar de Jesus Cristo". Ok, então eu posso falar.

E eu no meio disto?

Fui educado por uma mãe católica, e fui baptizado em criança. Em adolescente andei cá e lá, como tantos. Mais para lá do que para cá, talvez. Aos vinte anos converti-me docemente, e tive fé durante algum tempo. Depois perdi-a por completo. E há anos que vivo naquilo a que os católicos chamam "pecado mortal". Viver em pecado mortal não quer dizer que faça coisas más (embora as faça). Quer dizer que, por minha livre vontade, virei as costas a Deus para ficar sozinho no mundo, com o meu orgulho. Deus não nos bate nem nos castiga quando viramos as costas. Não precisa de escravos nem de prisioneiros. Deixa-nos ir. E eu fui. O mundo é muito grande, e tenho andado por muitos lados. Sem dar muito nas vistas e muitas vezes quase sem sair de casa. Vivi, como se costuma dizer. Em toda a parte encontrei o mesmo sofrimento. Apaixonei-me (mais do que devia). Apaixonaram-se por mim (muito menos do que era preciso). E as paixões chegaram e acabaram. Comi, bebi, fumei, dancei. Fiz coisas do arco da velha e vi coisas que não lembram ao diabo. A princípio pensava que ia ser sempre mais ou menos o mesmo. Depois aconteceu-me uma coisa invulgar, deixei de conseguir fechar os olhos. E consegui abri-los um bocadinho para mim. Percebi que aos dezasseis anos era apenas um rapazinho, e que aos vinte anos era já um idiota. Percebi que as coisas podiam ter sido diferentes, e mais bonitas. Percebi que quando somos muito pequenos não é só nos joelhos que nos magoamos. Percebi que somos sempre muito pequenos.
Sempre gostei de ler e de pensar. Procurei explicações para o mundo, e encontrei muitas. Entrei em igrejas vazias e entrei em casas de bruxas. Durante dois anos estudei astrologia e aprendi coisas assombrosas. Tive sonhos estranhos. Como o Hamlet, conversei com o meu Pai morto. Vi fantasmas e outras coisas inquietantes, de uma delas já falei aqui (a mais pequena). Estive em lugares santos, e conheci santos verdadeiros, vivos. Fugi a correr de sítios mortos onde ainda podes sentir deuses pagãos à espera de sacrifícios. Andei (ainda ando às vezes) no meio dos poderosos do mundo: conheci políticos, que foi como conhecer hienas, e milionários, que foi como conhecer ursos; conheci um imperador e um rei (ambos destronados), que foi como conhecer uma aguarela; conheci homens cujo poder se mantém na sombra, que foi uma maneira de conhecer a sombra. Vi pessoas a quebrarem-se de dor e a enlouquecer consigo próprias, e uma vez pelo menos fui eu que causei essa dor. Vi pessoas que se alimentam da dor dos outros, e às vezes foi da minha que se alimentaram.
A certa altura tudo o que eu tinha desapareceu. Como naqueles filmes em que o herói cai num alçapão quando ia prender o bandido. Desapareceu o alto conceito que tinha de mim (eu admirava-me imenso). Desapareceu a vontade de acordar, e a vontade de dormir. Afastei-me dos amigos e das pessoas de quem gostava. Fiquei doente, de corpo e principalmente de alma. Manter os olhos abertos fazia-me doer, mas continuava a não os conseguir fechar. Continuava a ver o Bem e o Mal, e tinha dado tudo para que se confundissem em nevoeiro. Mas não, havia o Bem e o Mal, nos outros e em mim também. Vivi muito tempo como se fosse um lobisomem: durante o dia trabalhava um bocado porque precisava de dinheiro (nessa altura tinha um trabalho que não me ocupava muito tempo) e logo a seguir ia a correr beber ou dormir ou andar pela noite como um morcego.
Houve uma noite em que tive que andar quinze quilómetros a pé para ir dormir a um quarto vazio onde só tinha um colchão, e era Inverno e estava a chover e tinha um tornozelo deslocado e sete escudos eram todo o dinheiro que tinha. Sabia que os dias a seguir iam ser muito piores (e foram). No meu caminho estava a ponte de D. Luiz, que é uma ponte antiga, toda em ferro, sobre o Douro, no Porto em que nessa altura vivia. E se nunca viram o Douro à noite não sabem o que é a noite a chamar-nos. E ali fiquei muito tempo, no meio da ponte e no meio da chuva, a pensar que por um instante podia fazer com que as coisas acabassem ali. Pensei em atirar-me. Pensei que não queria que se perdesse um chapéu preto que pertencia ao meu filho pequeno e que eu tinha trazido (vinha de casa dele) porque não tinha guarda-chuva. Pensei em mais três ou quatro coisas idiotas, e uma delas era a de que toda a vida tinha estado parado no meio de uma ponte. E de repente percebi que ainda tinha coisas para ver (no livro Memnoch - eu não me esqueci que é dele que quero falar - Deus manda o anjo Memnoch ao mundo não para interferir, mas para ver.). E que ver era mais importante do que ser feliz, gostar da vida, não ter uma perna magoada. Porque um dia alguém me ia perguntar o que é que tinha visto, e da resposta dependia a minha salvação.
No meio disto tudo também tive coisas boas, claro. As coisas foram sossegando, talvez um dia explique como. E aqui estou.
Este sou eu, ou antes esta tem sido a minha vida. Nada de especial, nem melhor nem pior que a dos outros. Ando por aí, faço coisas e não consigo deixar de olhar para as coisas à minha volta.

E uma coisa no fim de hoje

Hoje estamos na noite de Quinta para Sexta Feira da Paixão. Já acabou a última ceia há muito tempo. À hora a que estou a escrever isto, ou talvez um pouco mais tarde, Cristo está a ser procurado, num lugar chamado "Horto das Oliveiras", onde se tinha escondido para rezar uma última vez. Está a ser procurado por um traidor e por um grupo de soldados. Está com três amigos. A única coisa que lhes pediu (pediu-lhes tantas vezes) foi "vigiai". Em linguagem de hoje diria "Olhem. Olhem à volta. Vejam tudo o que há para ver. Não desviem o olhar e não fechem os olhos. Desconfiem se os olhos se vos fecharem. Talvez alguém queira que eles se fechem.". Quando os soldados chegarem os três amigos estarão a ressonar alto.
Uma das coisas que os católicos dizem é que o Natal e a Páscoa não são festas de comemorar. Acontecem todos os anos, como se o mundo inteiro nascesse de novo. Por isso digo "está a ser procurado". Sim, neste instante preciso. Não vai "fazer anos" que a cruz se ergueu. A cruz vai-se erguer amanhã. (querem um pormenor gótico? Vai-se erguer sobre dois túmulos tão antigos que estão esquecidos, os túmulos dos primeiros homens). A madeira vai ser cravada no coração do mundo. Sabem o que isso faz a um vampiro?
Boa Páscoa, para os bons e para os maus.