ela: deve ser giro falar contigo num dia de inverno muito frio a meio da noite no meio de uma rua sentados com carros a passar.
ele: no meio de uma rua sentados vamos parar ao hospital
(silêncio)
ele: mas eu levo o meu casaco preto quentinho quando estiver contigo numa noite de inverno
ela: Sim. Mas no meio da rua não era da estrada
(silêncio)
ela: era no passeio
(silêncio)
ela: encostados a uma casa velha a cair.
(silêncio)
ele: e em frente a outra casa em que num dos andares de cima há uma janela iluminada pequenina
ela: sem ninguém saber quem lá está nem quem é
(silêncio)
ela: e traçamos - lhe uma vida.
ele: uma vida muito importante
(silêncio)
ele: a luz tem de ser amarela, se não a vida nao é importante
(silêncio)
ele: e a porta cá em baixo tem de ter campainhas e uma das campainhas caiu, já só há um buraco
(silêncio)
e talvez seja a do quarto iluminado
porque é um quarto de certeza
ela: sim.
ele: um grafitti vermelho do lado esquerdo
ela: também.
ela: cartazes de peças de teatro que já não estão em cena do outro lado
(silêncio)
ela: e os carros estacionados do lado esquerdo e do direito do buraco por onde vemos a outra parte da rua
(silêncio)
são velhinhos.
ele: e se tivermos sorte tu apercebes-te de que cheira a pão quente
ela: e um tem uma nossa senhora de fátima à frente.
ele: um dos carros está abandonado, cresce uma erva junto ao pneu
ela: está um pacote de ice tea daqueles de papel sujo e totalmente velho, amachucado a cinco metros de ti
(silêncio)
que estás do lado esquerdo.
ele: eu olho para cima e vejo uma coruja, mas quando te digo ela ja passou. ficas a olhar como se soubesses que ela vai voltar. e eu fico a olhar para ti, como se tivesse medo de que te magoasses.
(silêncio)
e é verdade que estou do lado esquerdo.
ela: estou com o meu casaco preto comprido. deve ser Novembro. agradeço - te o olhar com um sorriso um bocadinho triste, porque Novembro é triste. não falo. aperto o cachecol preto comprido ao pescoço. tiro um chocolate do bolso. ofereço - te metade sem saber se gostas de chocolate negro, aquele amargo.
ele: gosto. tiro um bocadinho de chocolate e reparo que ficou uma migalhinha na tua mão. mas tu metes a mão no bolso logo a seguir. e dizes uma coisa que me faz rir.
ela: rio também. baixinho para não perturbar o quarto iluminado.
ele: nenhum de nós tem vontade de voltar a casa
ele: nao tenho a certeza se já deste por um gato que está ao fundo da rua.
ela: mexe com a pata direita num saco plástico abandonado. olha, correu para o nosso lado da rua. vem lá um carro.
ele: calamo-nos para o carro passar.
ele: não sei se quero voltar a olhar para ti, fiquei a ver o carro virar a esquina. tenho medo que me perguntes outra vez uma coisa que me faria falar. tenho medo que te tenhas esquecido dela. o pacote de ice tea está desajustado ali, e eu penso que alguem o pôs para eu me lembrar de mim.
(silêncio)
ele: mas talvez me ofereças outro quadradinho de chocolate.
(silêncio)
está mais vento agora.
ela: o carro tinha aquela música irritante de discoteca. era um carro tunning. não gosto de tunning. pergunto - me se é a altura certa para to dizer, agora que o carro passou. tenho medo de falar, o silêncio está - me a fazer bem. não falo, pois. falo? não. que estarás tu a pensar? não trouxe as luvas.
ele: de repente eu penso "tu brilhas com uma luz tão negra". começo a contar-te uma história qualquer.
ela: o frio da noite deve estar a atingir o seu ponto máximo. tiro o chocolate do bolso, tiro um quadrado e ofereço-te enquanto pronuncias a palavra relâmpago na história.
ele: a luz apagou-se, nem demos por ela (terás dado tu? é tão dificil ver os teus olhos). "não", digo, "já não tens mais. esse é p'ra ti, não jantaste nada"
ele: eu sei que estou a sorrir. sei, como se fosse uma coisa estrangeira.
ela: "nunca tenho fome", respondo, baixinho e triste e não sei porquê. "de chocolate. pelo menos." não quero olhar para ti agora.
ele: sei.
(silêncio)
ele: e eu olho.
ela: encosto devagarinho a cabeça no teu ombro.
ele: eu ia passar o braço pelo teu ombro, devagarinho. tenho a certeza de que reparaste que não me saiu bem o gesto de tirar a mão do bolso, ficou presa e acho que corei.
(silêncio)
ele: mas isso não interessa muito.
ela: senti que percebias que estava um bocadinho perdida naquele dia. aconcheguei-me a ti.
ele: seguro-te baixinho.
ela: não te digo o que tenho. não sei o que tenho.
ele: eu estou calado. tantas coisas para dizer.
ele: frases e pedaços de frases e palavras e coisas que não podem ser ditas porque são imagens ou gestos ou músicas, não são palavras nem frases nem coisas que soubesse dizer.
ela: reparei que não perguntei como estavas, como te sentias, nem olhei para os teus olhos para o saber. mas não me apetece levantar do teu ombro.
ele: e penso "se eu dissesse tudo talvez tu sorrisses"
(silêncio)
ele: a minha mão está pertinho dos teus cabelos. lembro-me de me terem dito que se pode tocar neles sem que ninguém dê por ela. mas isso faria a coruja não voltar.
(silêncio)
ele: e de repente estou muito triste. não quero que te apercebas.
ela: uma onda de ternura invade-me, e de remorso pela minha falta. levanto-me devagarinho e olho nos teus olhos. Estão baços.
ele: tenho de encontrar qualquer coisa para te perguntar, como se te oferecesse um caminho de outono.
(silêncio)
ele: porque é que só consigo sorrir? o mundo é tão completo.
ela: "o teu sorriso não chega aos olhos", digo. e sinto-me branca-de-neve ao dizer isso.
ele: "agora chega sim"
ela: "porque não chegava?"
ele: "não queria mais nada nos olhos senão isto. és bonita, k."
ele: "tão bonita" digo ainda mais baixinho. dava tudo por um quadradinho de chocolate negro.
(silêncio)
ele: e penso "tenho dez segundos para te saber"
ele: "para saber como se a tua historia fosse eu a inventá-la, fosse eu que a fosse contar"
ela: coro um bocadinho. ainda tenho o quadrado de chocolate negro na mão. não derrete, pois. sorrio um bocadinho e faço-te uma festinha ao pé dos olhos cansados.
ele: desculpa ter pegado na tua mão. gosto do teu casaco, do teu cachecol tão comprido. lembro-me de coisas que me disseste ontem, coisas claras e pequeninas.
ele: desculpa estar assim.
ela: eu não me importo. estou preocupada contigo. sinto que hoje para ti já é dezembro. Queria fazer-te sentir que ainda é outono.
ele: quando te ergueste reparei na sombra, na tua sombra. só se distingue a cabeça e um ombro, o resto mistura-se com a minha.
ela: não sei se te hei-de falar.
ele "sabes, k...", digo. mas calo-me.
ela: "és o único que me chama k."
ela: "mas fala"
ele: "sei. às vezes nao sei chamar-te outra coisa. às vezes só a k. me não assusta"
ele: "falo... às vezes a k. dá-me vontade de a abraçar. como se as coisas fossem feitas de outono"
ela: eu gosto que me chames k.. não a deixas sozinha. espero q ela também te acompanhe
ele: um dia vais-te esquecer dela como as crianças se esquecem de um brinquedo quando as férias chegam ao fim. quando isso acontecer eu guardo-a, posso? eu trato-a bem para ti
ela: não me quero esquecer da k.
ele: talvez eu seja a tua terra do nunca.
ela: ela é a minha ligação contigo aqui nesta noite de novembro.
ele: eu sei. hoje é para a k. inteira que eu estou a olhar. hoje é a k. que está aqui embrulhada em negro.
(silêncio)
ele: hoje a lua devia parar.
ela: nem vi a lua hoje.
ele: ali, atrás daquele prédio grande. mas não se vê a luz. as nuvens.
(silêncio)
ele: nunca se vê o céu em lisboa.
ela: por isso é que o alentejo é tão lindo.
ele: tenho medo do alentejo, sabes?
ele: a planicie grita. as flores são amarelas.
(silêncio)
ele: no alentejo eu teria medo de ti.
ela: porque eu estaria no meu elemento. ou num dos.
ele: sim.
ela: reparei que não continuaste a frase. paraste em k. há bocado. que falavas? que esconde o baço dos teus olhos hoje?
ele: pois parei. nunca digo as coisas, nao é? nunca faço e nunca digo e nunca vou onde devia ir.
(silêncio)
ele: perco-me antes de chegar a ti.
ela: escondes-te.
(silêncio)
ela: não tenho luz. não sou farol. que me falta para chegares a mim?
ele: "não é esconder, sabes", penso eu
(silêncio)
ele: "nao é esconder", digo
ele: é...
(silêncio)
ele: calei-me outra vez. porque é que não digo as palavras?
ele: sinto o meu casaco como se fosse um muro feito de noite.
ela: nunca saberei de que querias falar?
ele: sou mais um dique que uma pessoa, sabes? se abrir as coisas espalham, nao fica nada do meu lado do dique.
(silêncio)
ele: talvez seja por isso que tenho medo do alentejo, da planicie.
ela: eu sou o outro lado do dique. abre as comportas, a água fica entre nós e é dos dois.
ele: um dia contei um sonho na ribeira, não me lembro se já te conhecia.
ele: estava numa casa grande e havia um rio e havia coisas que queriam fazer mal à menina de negro. e eu dei-lhe a mão e puxei-a para mim e disse 'a unica hipotese é perdermo-nos juntos'
ela: se eu fosse a menina de negro abraçava-te pela protecção.
(silêncio)
ela: que fez ela?
ele: se eu abrisse as comportas era só a água.
ele: descemos umas escadas grandes. mas nao sei se conseguimos fugir.
(silêncio)
ele: a casa era tão grande que um dos corredores tinha um rio no meio onde andavam barcos, as escadas subiam e desciam sem que lhes víssemos o fim.
ela: sonhos estranhos que tens.
ele: tenho sempre sonhos como se fossem histórias de assustar.
ela: aqui começa a anoitecer para as pessoas de luz.
(silêncio)
16.6.06
dezasseis de junho por dentro
6 Comments:
Belo e fundo.
Abraço.
P. S.
Gostei da mise en scéne da tua amiga... nada me custa que o espelho das palavras reflictam uma coisa outra que não o que os meus olhos viram... Complicas demasiado a tua vida... deve ser de seres cristão!... JAJAJAJA!!!
Sorte!
NOTA: Reduz o tamanho da imagem, meu cyber-neolítico... já te projectou a zona de perfil para os pés do blog de novo! :)=
Achas que sei fazer isso ?! :)
Obrigada.
K.
Fónix... que cyber-neolítico...
Vai aqui: http://www.irfanview.com/main_download_engl.htm
Com este programa fazes o resize da imagem... tipo para 2/3... e depois substituis.
Ou talvez para metade... a imagem é enorme. Depois de substituires a imagem... a zona de Perfil, etc... já sobe de novo.
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