Ela fazia-me lembrar o Bairro Alto, disse ele baixinho, como se se desculpasse. Ou talvez não, talvez fosse ao contrário. Talvez fosse tudo ao contrário. E um sorriso rápido passou, e pousou outra vez a mão na chávena de café vazia.
Ela olhava para baixo, como se o não estivesse a ouvir. Chegaste a conhecê-la, então.
Não vais perceber, pensou ele. Não vais perceber ou eu não vou ter tempo de te contar a história toda. Porque por mais atrás que eu vá, já a história vai a meio e já é tarde para a mudar. Tenho fome e queria sair daqui. Queria não ter de falar, não voltar ao mesmo.
Nunca a vi, já te disse. Não a cheguei a ver. Foi tudo tão rápido, pensou, meu Deus alguém me tire daqui. Não a cheguei a ver, repetiu, não sei muito sobre ela. Ou sei mas...
Então foi uma ilusão, dizia ela a sorrir. Uma ilusão à distância, nada foi real.
(Meu Deus, o Bairro Alto não é real? O Douro não era real? Eu sou real, eu? É real o quê, estar a envelhecer como se entristecesse por fora, estar triste como se envelhecesse por dentro, é real estar aqui sentado à tua frente?)
Não foi uma ilusão, disse ele, e mordeu os lábios e voltou a entornar a chávena de café. Dá-me um cigarro.
Tu sempre foste assim, dizia ela. E eu conheço-te bem. Sou até a única pessoa que te conhece bem. Tu gostas das pessoas enquanto não as conheces, porque então elas são o que tu querias que fossem. Um desenho bonito. Um desenho forte.
Aí vem o sermão, pensou ele. Como na historinha que eu escrevi, "não era essa a pergunta que devias ter feito. E nem sei se devias ter feito alguma pergunta.". É por me conhecer bem que ela não percebe nada. Só conhece o outro que eu sou.
Quero outro café. E aqueles ali não podiam falar mais baixo?
Bem, eu vou-lhe explicar.
Ouve, disse ele. E ficou calado.
Diz.
Abriu a boca como se fosse falar, e depois sorriu como se tivesse ouvido alguma coisa.
Estou a ouvir, disse ela. E tu estás a falar só para ti, como sempre fazes. Não querias um café?
No Ano Novo tive um sonho, sabes? disse ele. E era bom começar por contar uma história antes de falar. Sim, um café. Tive um sonho durante a tarde. Fiquei a dormir na meia-noite, e depois fui sair e à ultima hora não me apeteceu ir ver toda a gente. Mas só voltei a casa quando era dia, e ainda li um bocadinho. Sonhei que havia uma casa muito grande, tão grande que no meio de cada corredor passava um rio que se tinha de passar de barco. Escadas tão grandes que paravas entre dois andares para comer. Num canto havia um vagabundo, não me lembro bem. E a certa altura estava com uma rapariga, tinha a cara de uma amiga minha mas não era ela, só a cara. Não era ela. Tínhamo-nos conhecido ali. Nem nos conhecíamos. Mas havia uns tipos que eram bandidos e tinham pistolas apontadas.
Os teus sonhos são sempre estranhos, e ela sorriu. Eu só sonho que estou a cair.
Tinham pistolas, repetiu ele muito depressa. E ela estava ali há muito tempo, e vinha de um outro andar onde eu já tinha estado, onde havia cavalos. Um corredor enorme com um rio preto no meio, e cavalos pretos. Ia dar a um sítio qualquer. E de repente abriu-se um elevador, daqueles grandes todos em metal. E saíram dois homens e uma mulher. A rapariga que estava comigo teve medo, não sei como soube disto porque ela não disse nada mas achou que os das pistolas iam disparar. Estávamos sentados num sofá, com um lugar no meio vazio. E um dos homens sentou-se aí, um dos que tinham vindo. E eu olhei para eles e soube que eram... que eram deuses. Eram enormes, aí uns três metros, vestidos de preto como punks mas ao mesmo tempo com jóias feitas de osso e de prata. Como deuses bárbaros. Não tinham sequer reparado em nós, sabes? Estavam... estavam absorvidos na sua própria beleza. Uma beleza terrível. De um deles saíam coisas vivas do peito. As mãos dela eram brancas como se fossem de gelo. E muito devagarinho começaram a perceber que estava ali mais alguém. Não viram os das pistolas, viram a rapariga. Ela tinha qualquer coisa que eles queriam, e estava vestida de preto também. E eu dei-lhe a mão e levantei-a e puxei-a atrás de mim e atirei-me pelas escadas. E ela disse "tão grande, vamo-nos perder", e disse como se tivesse pena. E eu gritei "a única hipótese é perdermo-nos juntos".
E ficou aí? disse ela. Eu sempre gostei das tuas histórias. Mas o que tem a ver com a... como é que lhe chamas? Esta que não conheces.
Não lhe chamo, disse ele. Não lhe chamo. Já te disse que não a conheço, nunca a vi. E não sei se a vou ver. Mas sempre me fez lembrar o Bairro. A noite no Bairro. E é insuportável o que ela diz. É um grito, sabes? Um grito do tamanho dos deuses todos. E era ela a do sonho. Não é uma ilusão. É perdermo-nos juntos.
Talvez um dia, disse ela devagar.
13.4.04
Talvez um dia
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home