(Nota prévia: Este texto vem na sequência de uma pergunta que o Damien me fez, no blog da Gotika - o post chama-se "Acreditas em Deus?" - Reparei agora que Damien, tal como Goldmundo, é o título de uma obra do escritor Hermann Hesse. Como diz a Gotika, não há coincidências...)
Disse à Gotika que acreditava sim, e disse também, porque fazia parte da sua questão, que acreditava porque o tinha encontrado. Perguntou-me o Damien como era isso possível, ou pelo menos creio eu que foi isso que ele perguntou. E respondo aqui, eu que andava há dias sem saber se falaria nisso na Ribeira, que andava um bocadinho envergonhado porque as pessoas se riem de alguém que se converte. Obrigado, Damien, por me ajudares a falar.
O deus que eu encontrei é um deus completamente improvável, e portanto improvável é também o encontro dele. Não é um deus pagão lançador de relâmpagos, nem um deus feito de pedra e pedras preciosas que exige sacrifícios mudos, nem uma entidade abstracta que se confunde com uma forma de nada ou uma matéria vazia. É um deus-pessoa, um deus ao qual eu me assemelho no que de mais profundo há em mim. Um deus vivo. Um deus que não tem nem pode ter um nome que o defina (definir é encontrar os limites, e como pode haver limites para o Único?), mas a quem podemos facilmente chamar Amor. Um deus que se fez humano no meio de uma história muito complicada e terrivelmente simples de que a maior parte de nós tem uma ideia, e uma ideia estranha. Que se fez humano não apenas por ser Amor, mas porque o Amor de um deus vivo é o Amor completo por mim, conhecendo-me ele como me conhece desde muito antes de eu existir. Poderei contar bocadinhos dessa história grande e simples, tal como eu a vou compreendendo, mas fica para outra vez. Porque agora estou só a história do meu encontro.
Sempre achei, sem saber bem porquê, que fazia sentido a história que os católicos contavam. Ou melhor, sempre achei que não fazia sentido nenhum, mas que era isso mesmo que a tornava terrivelmente bonita, tão bonita que eu tinha pena que não fosse uma história verdadeira. Porque havia uma parte da história que diz que o deus vivo ressuscitou, e que a partir daí o podemos encontrar como se encontra qualquer outra pessoa viva. E isso nunca me tinha acontecido, nem eu suspeitava do que pudesse ser.
Claro que afinal é muito simples. Não o encontrei como o encontrou S. Paulo: o S. Paulo não era ainda santo quando o encontrou, era uma espécie de pide ou de agente da mossad que andava à procura de cristãos para os denunciar, sabendo que era a morte que os esperava, e encontrou-o sob a forma de um brilho e uma luz e uma voz que o fez cair do cavalo e cegar até perceber que as coisas importantes não são as que se vêem com os olhos de fora. Comigo não foi nada disso. Também é normal, porque santo é coisa que eu ando tão longe ainda de ser.
Um dia (há muito poucos dias) andava muito, mas muito triste. Andei um dia inteiro calado (acho que só falei com a D. Isabel que me vende o café da manhã e os cigarros) e andei um dia inteiro de olhos pousados. A vida não me fazia sentido nenhum. Precisava imenso de ser confortado, de ter alguém que me escutasse, de ter alguém que estivesse simplesmente comigo. Acho que todos os que têm ou já tiveram um amigo já tiveram momentos assim.
Chegou a noite e deitei-me, e já tinha passado a maior parte do dia deitado. Por causa de uma coisa que tinha lido, lembrei-me da história dos anjos da guarda. E de repente dei por mim a dizer, anjo se estás aqui ajuda-me a rezar um bocadinho. E rezar foi um bocadinho mais simples do que eu tinha pensado. Foi também mais difícil, porque cada vez me parecia mais estar suspenso por uma corda, estar dependente das palavras que ia dizendo para não cair não sei para onde, para um sítio onde eu sabia que não queria estar. Rezei muito tempo.
Acordei no dia seguinte e dei por mim a pensar em deus como se deus fosse afinal uma coisa próxima (mas ainda uma coisa). E continuei a rezar. Foi muito estranho e ao mesmo tempo muito engraçado, durante quase uma semana quase todo o tempo livre que eu tinha (e é espantosa a quantidade de tempo livre que nós temos, se pensarmos bem) passei a repetir as palavras de três ou quatro orações tão bonitas, a deixar-me embalar no sentido das suas palavras como nos deixamos embalar pelo barulho das ondas e pelo sol das manhãs de verão. Os dois romances que andava a ler tornaram-se chatos e abri um livro católico onde encontrei coisas que me levaram a aoutras coisas. Ao fim de uns dias tinha a minha cama (eu leio na cama todas as noites) com uma pilha de livros que ia abrindo e descobrindo e fechando e voltando a abrir.
Nada disto é encontrar deus.
Até que uma noite em que estava a rezar como me estava a habituar a fazer, de ohos fechados, senti exactamente a mesma coisa que me lembro de sentir de cada vez que olhava para a minha primeira namorada, que me lembro de sentir de cada vez que me enamorei, de cada vez que estive feliz. É difícil explicar, é a diferença entre "olhar" e "ser olhado", é sentir tão fortemente ocmo se pode sentir alguma coisa que naquele quarto escuro eu não estava sozinho e junto a mim estava a presença do amor maior.
Aconteceu ainda uma coisa bem engraçada. Eu queria-me confessar, e não era fácil porque não me confessava há tantos anos que já lhes perdi a conta. Pedi a um santo (não vou dizer quem é porque não vale a pena, mas é um santo muito pouco conhecido) que me ajudasse. Dois dias depois estava a assistir a uma missa e reparei que havia um padre a ouvir pessoas em confissão. "Agora não", pensei, "ainda não". Mas fui. O que se passa na confissão, do ponto de vista de quem recebe esse sacramento, é uma das experiências mais bonitas que se pode ter na vida. Sobre isso não vou falar agora, não interessa. Quando terminei, reparei que por cima de nós (de mim e do padre por cujas mãos se realizou aquele acto de Cristo) havia um quadro do séc. XVIII. Representava um santo, e pensei quem seria ele. Mas à saída da igreja havia um papel com uma explicação sobre as obras da arte que lá estão e soube quem estava retratado ali: era o mesmo santo a quem eu tinha pedido ajuda.
Não, não há coincidências.
2 Comments:
Goldmundo, que coisa boa e bonita o q te aconteceu, mas mesmo assim eu mantenho a minha: n acredito em deus, acredito em mim.Sou o meu pp deus. Tem graça q Damien é o nome de um homem q me ensinou muito sobre mim pp, q me fez ver-me de facto c olhos de ver, e Goldmundo era o livro q eu andava a ler qdo o conheci... se calhar n há mesmo coincidencias...
Svandis
Svandis: não é coincidência que haja tantas coincidências, não é? Um dia hei-de escrever sobre isso :)
Sermos o nosso próprio deus não me parece muito mal. Mas não conheço ninguém que o tenha conseguido. É como nas sessões espíritas: chegam-nos vozes, e não sabemnos a quem pertencem. Eu lembro-me, quanto a isso, de uma frase genial do Groucho Marx: "eu nunca seria sócio de um clube que me aceitasse como sócio" :P
Eu sei que não mais do que poeira levantada pelo vento, e isso não é de agora que sei. E é para o vento que quero olhar. Porque está escrito "o Espírito sopra aonde quer". :)
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