15.4.05

Segredos do Mar Vermelho (I): Señora de los gitanos



Señora de los Gitanos. Segredos do Mar Vermelho, sim (ah, que os mais novos já não sabem o que estas palavras querem dizer...).

Conheci há muitos anos, no Porto, o Fernando. Hijo y nieto de gitanos, talvez bisneto do chefe dos Maias de Espanha (ainda os haverá? estarão agora em bairros da Câmara e em grupos de rap adolescente?) de quem o meu avô fora amigo em adolescente, e que viera de Sevilha ou de Granada para Espinho com os seus animais e o seu clã, depois de uma história cega de navalhas e de morte a cavalo. Mas quem eu conheci foi o Fernando. Tinha ele nessa altura vinte anos, o cabelo preso em rabo de cavalo e uma cicatriz na face esquerda, dois revólveres e duas namoradas; ganhava cem contos em cada dia de traficar, que gastava alegremente ao volante de um inconcebível Ford verde alface. Durante um tempo bebemos, quase em silêncio: éramos conhecidos de conhecidos de conhecidos.

Mas na noite em que bebemos até madrugada (foi uma das primeiras noites em que vesti de negro e usei um anel de prata) percorremos juntos sítios onde se fabricavam os pós de enriquecer, e depois ouvi-o tocar na guitarra, perdido de bêbedo e com uma voz que fazia lembrar a Lua, o Señora de los Gitanos como nunca o tinha ouvido ser cantado.

Não nos encontráramos por acaso, o negro não era acaso. E eu tinha medo, sim. Algum tempo antes, com os seus amigos polícias (com os seus amigos polícias...) o Fernando tinha violado uma rapariga junto das encostas do Douro em noche de sangre y de luna, e a essa rapariga eu tinha jurado que voltaria a acordar...

Que mais posso dizer? A ela tinha-a eu conhecido quando os seus olhos eram brilhantes, e demorara-me a olhá-la mesmo quando ela me disse "sabes, este é o meu namorado...mas gosto muito de ti". Que eu saiba, a Señora de los Gitanos nunca mais foi tocada por aquelas cordas, depois da noite tão comprida. Sim, às vezes eu sei de onde me vem o medo. Ásperos caminhos. Segredos do Mar Vermelho.

(Conhecem a canção da Laurie Anderson?

"It was August, Summer of '82
You had that rusty old car
And me I had nothing better to do
...
If I could open my mouth now
there's so much I would say
Like I can never be honest
Like I'm it for the thrill
Like I never loved anyone
And I never will"
)