Na minha casa de criança havia um muro alto de pedra a toda a volta, e a um dos cantos do muro da frente havia um varandim em ferro forjado. Subia-se lá por três pequenos degraus de pedra, passado o banco revestido a azulejo antigo, passada a azálea amarela e as duas japoneiras de flores sangradas. Mais tarde, querendo enganar a vigilância da minha avó inquieta, aprendi a saltar do varandim até à rua morta apetecida: em frente, um plátano acolhedor (serrado numa manhã de Janeiro, sinal da modernização e da queda do meu bairro encantado) deixava-me deslizar devagarinho pelo seu tronco até ao empedrado forte da rua. Os vizinhos, humildes, fingiam que me não viam ("o menino da casa grande...") e faziam bem.
Era velho o meu varandim, e alguém (o meu avô?) plantara junto dele uma glicínia, que se apoiava no tronco espesso de uma árvore morta que talvez tivesse sido uma ameixoeira. A glicínia (as heras que nela se misturavam, as ervas altas que devagar iam comendo as heras) fazia daquilo um sítio sombrio. Os gatos escolhiam-no para dormir pelo fim da tarde. Bicharocos inenarráveis espreitavam das folhagens sumarentas. Todos os Invernos o azulejo do banco rachava mais, quase não se via já a cabeça do anjo. Devagar, muito devagar, o tronco vivo da glicínia enrolava-se nos ferros forjados, abraçava-os, misturava-se neles, fazia-se eles. Uma tarde percebi, com horror, que o varandim já não existia. Apenas pedaços soltos de ferro carcomido, esmagados pelo abraço forte do tronco vivo.
Houve tempos em que julguei (era jovem) que seria capaz de forjar a minha vida pura, e que me rodearia de glicínias e de plátanos fortes e de cabeças de anjos adormecidos como se todo o mundo me aguardasse do outro lado dos muros fáceis. Depois alguma coisa correu mal. Talvez seja apenas o ter envelhecido, e talvez me tenha tornado, não o altivo varandim, mas o tronco feio da ameixoeira decepada. Depois quis adormecer. Senti no meu peito bichos estranhos que antigamente se chamavam pecados. Pedi ao céu que fizesse chover. Os anos passaram, e o menino da casa grande já só é menino quando os olhos se lhe não fecham.
Glicínias. Árvores mortas. Gatos vadios adormecidos na fome de enganar os dias. E ferros, os ferros forjados em que da vida a forjar ficaram só as marcas das prisões que me fiz. Isto que está na foto tenho sido eu. Uma coisa que já foi, uma coisa podre, uma coisa morta. Mas não morri, e vou saltar o muro pela última vez, que desta vez não estarei em casa à hora das Ave-Marias, à hora de jantar e de me portar bem. Vou dar o último salto para a rua abraçada. Talvez tenha que derrubar os restos ferrugentros do varandim e a glicínia e a ameixoeira decepada e acordar os gatos e ferir o anjo azul e olhar para os vizinhos como se eles nunca tivessem existido. Mas saio de vez da minha casa grande. Se calhar não vou para lado nenhum. Do outro lado já o plátano enorme foi transformado em móveis suburbanos ou em lenha moribunda. Mas saltarei na mesma o muro de pedra. Quero ver o que há do outro lado da rua. Quero encontrar os traços da tinta da china. Quero voltar a chorar. Já não há tempo para voltar atrás e ficar sentado no jardim. Hei-de encontrar o perfume doce das glicínias, refazer a forma altiva do ferro forjado nas minhas mãos. Quero ser o vento na folhagem.
1 Comments:
Ainda bem que queres ver o que há do outro lado da rua. É próprio dos que pesam e ambicionam mais. Continua à procura. Gostei muito do texto. Vim "curiosar" e dizer que já lá tens a reposta. Perdoa se não for uma verdadeira resposta para ti. Aquio que pensamos para nós nem sempre são as respostas para os outros.
... e já agora, porque me colocas na Sombra dos dias?
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