2.4.05

Les jardins sauvages (II): a morte do "Temerário"



Eu disse que voltava aos jardins selvagens. E entretanto, a Kearinn da Via Occulta também falou. Lacrimae Mundi, Tears of the World, alguém se lembra? "solitários são os caminhos do necromante..."

Não sei se o quadro que hoje trouxe fala por si, e então vou eu falar um bocadinho dele. E sim, antes de continuar vão ver o blog da Gotika. "As if by magic, I have been spared...". Assim são as coisas do mundo, feitas de laços tão frágeis. The Black Goddess sings alone. E quem puder compreender que compreenda.

Este quadro é uma pintura de Turner, e Turner foi o maior pintor inglês do romantismo (os primeiros góticos, se quiserem). Ao contrário de tantos outros que pintaram as montanhas, e os castelos, e as igrejas em ruínas de onde poucos anos depois haviam de nascer os vampiros de outras histórias, Turner pintou, principalmente, o mar e os navios do mar. Mais do que isso, foi o primeiro que pintou as cores, em vez de pintar com cores. Fez à pintura o que fizeram às palavras os poetas que se libertaram da rima.

O que vemos aqui é a última viagem do Temerário, que fora o navio-almirante da Armada Inglesa, que derrotara Napoleão na grande batalha de Trafalgar, e que agora vai morrer de morte matada. Reparem bem. É arrastado por um pequeno vapor, visto de frente, e as orgulhosas velas que já foram a vitória e o canto da vitória são agora, só, asas inúteis. Os mastros ganham a forma da cruz despida. E o triunfo parece ser o do fumo negro, tão diferente do esplendor dos canhões que cantaram a morte e a vitória. Ah, mas o vapor será sempre tão pequeno. E por isso, no quadro, o Sol está a ir-se embora também, como se quisesse esconder-se para deixar a Lua chorar. E por isso, em baixo à direita, a mancha negra que não sei o que seja é para mim a morte ajoelhada. Porque (viram o Village?) diante do amor todo o mundo ajoelha em espanto.

Jardins selvagens, disse eu, e era do amor que falava, e é de amor que nós andamos a falar ou à procura no coração. E disse que o amor é o que há em nós de mais semelhante à morte. "Rapa", disse a Kearinn, e a Dama Velada de Tir n'a nOg usa sempre as palavras como punhais. Mas o que é esta morte que aqui trazemos? Porque foi ela que transformou o jardim do paraíso no jardim selvagem onde felizmente vivemos (não estou a delirar: Feliz culpa, disse Santo Agostinho referendo-se ao pecado de Eva, e Agostinho sabia de que falava).

Vivemos hoje num mundo que nos ensinaram ser feito de átomos e de células e de momentos e de coisas soltas. Um mundo estilhaçado, onde não há lugar para o olhar dos deuses que unifica e consagra. O reino da quantidade. E a morte foi posta de lado, o último momento para o qual vale mais não olhar enquanto for possível olhar para as coisas fáceis. Mas isso é porque o Senhor deste Mundo é o senhor da mentira. Toda a vida é um ensaio para a morte que é, não apenas passagem, mas recapitulação e síntese e apoteose e vitória. As by magic, I have been spared. Quando a vida é feita, a morte refaz o fazer que fomos fazendo, e por isso a morte é a per-feita imagem da vida toda. E por isso o amor é antecipação e viagem e encontro. Por isso, também dá tantas vezes vontade de chorar. Porque só aqui há a entrega total ("tira", disse a Kearinn) que é a entrega que a morte nos pede.

Nos jardins selvagens a morte passeia, como o Senhor Deus passeava no jardim do Paraíso. E por isso certamente a havemos de encontrar, olhos nos olhos. E olhos nos olhos é também a única coisa que distingue o amor das coisas fáceis.

Desculpem. Eu dou tantas voltas, não é? Ainda não cheguei nem perto do que vinha dizer. Só às vezes consigo encontrar as palavras. E ninguém me ensinou a pintar ou a tocar piano ou a nadar ou a fazer com que o silêncio me baste. Ninguém me ensinou a crescer. Cheguei já à idade em que é mais fácil olhar em frente do que olhar para trás. E penso que um dia hei-de fazer a viagem triste do Temerário. Gostava mais de ter incendiado a batalha. De ter amado quando podia ainda navegar. De ter acompanhado o canto frágil dos mundos (ontem vi, nuns olhos que choraram, o canto frágil dos mundos condenados. Mas para mim já não haverá a morte ajoelhada).

E não, não trairei os jardins selvagens. Ainda há uma história que eu quero contar.