É hoje Sábado de Páscoa, e portanto um dia bom para olhar de frente a morte e o amor. O que quer dizer olhar de frente para tudo, porque neste mundo nada mais há que valha a pena ser realmente visto.
E hoje venho aqui (nunca mais digam que só trago pinturas antigas...) com o mais espantoso quadro da espantosa Frida Kahlo, El abrazo de amor. Não é o amor fácil dos amantes, não é o sorriso. É uma coisa grande que dói como não devia doer. O Universo (vejam o título completo da obra) abraça a Terra do México, que abraça a sua filha Frida (a sua filha ferida), que abraça o seu amante-pai-irmão-rival Diego Rivera. No fim, o homem, o homem adulto que volta a ser criança ou nunca o deixou de ser, mesmo quando as feridas são incuráveis (ai, a cabeça esburacada). Mas resume-se assim o amor a abraçar cada um com abraço de Mãe? Claro que não, e disso a Frida sabe muito mais do que nós algum dia saberemos. Por isso junto deles há um cão adormecido (reparaste?): é o Señor Xolotl, o deus Azteca associado a Vénus (ao amor), que guarda o Sol durante a sua viagem nocturna pelas trevas, até que de novo chegue a radiosa madrugada. Todos, menos o Amor, estão de olhos abertos, e ainda bem: porque só ele já viu tudo quanto era preciso ver.
Tudo aqui está rasgado, não é? E rasgados estamos nós também, mesmo quando fingimos não dar por isso. Nunca a vida foi pintada assim, rasgão que a morte faz sem querer, insuportável cicatriz dos mundos. Olha bem as espantosas plantas: são como mãos erguidas em súplica a um céu sádico e calado, e por isso das mãos imensas do Universo saem raízes estéreis, como estéril é tudo o que anda sozinho. O que os quadros da Frida Kahlo têm de espantoso é mostrar-nos a diferença que vai do amor da morte ao amor a morrer.
Gostávamos que o mundo não fosse assim, não é? E a maior parte do tempo fingimos que as cores dançam à nossa volta como se fossem uma corte de borboletas. Mas o mundo é mesmo esta coisa rasgada. E como amar num mundo assim, num mundo que não anda feito à nossa imagem? Como é possível?
Mas dos mais fundos rasgões sai o canto suave do amor escolhido.
Jurarei
eterno amor
saudade
a vida inteira
ao nascer do sol
no Pomar das Laranjeiras
E se o dia
não vier
voltarei
de qualquer maneira
só para te ver
no Pomar das Laranjeiras
É tão grande
o meu amor
foi assim
logo à primeira
só será maior
no Pomar das Laranjeiras
[pintura: Frida Kahlo, El abrazo de amor del universo, la Tierra (Mexico), Diego, Yo y el Señor Xolotl (1949);
texto: O Pomar das Laranjeiras, de Pedro Ayres de Magalhães
(cantado por Madredeus)]
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