6.3.05

Outro eu, mim mesma (IV): O escafandro e a borboleta



Agora que o Mar Adentro está aí recordo uma pessoa cuja vida não deu um filme. Jean-Dominique Bauby, jornalista, redactor-chefe da Elle francesa. Parisiense. Rico. Casado. Dois filhos. E um dia uma doença estranha paralisa-o: apenas pode mover a pálpebra esquerda, mesmo respirar implica estar ligado permanentemente a uma máquina. Completamente lúcido. É o escafandro. E é a borboleta dentro dele aprisionada. O fim?

O princípio. Bauby faz, durante um ano, uma espécie de código morse com as pessoas à sua volta: um piscar de olhos quer dizer sim, dois quer dizer não... daí às letras, uma por uma. Daí às palavras. E no fim um livro inteiro, ditado devagarinho (cada noite imaginava um parágrafo, cada manhã penosa ditava o que a borboleta ia pensando, asas imensas na escuridão do ser-que-não-tem)

O livro está publicado em Portugal. Falou-se dele na secção erudita dos comentários literários. Não conheço ninguém que o conheça. Mar adentro, céu aberto para a borboleta submersa:

Fala Bauby: "O escafandro torna-se menos opressivo e o espírito pode vagabundear. Como uma borboleta. Há tanta coisa a fazer. É possível elevar-me no espaço ou no tempo, partir a voar para a Terra do Fogo ou para a corte do rei Midas. É possível ir visitar a mulher amada, deslizar junto dela e acariciar o seu rosto, ainda adormecido. É possível construir castelos no ar, conquistar o Tosão de Ouro, descobrir a Atlântida, realizar os sonhos de criança e os sonhos de adulto.

Basta de dispersão. É sobretudo necessário que eu componha o início deste diário de viagem imóvel, para estar pronto quando o enviado do meu editor vier recolher este ditado feito letra a letra. Na minha cabeça, mastigo dez vezes cada frase, corto uma palavra, acrescento um adjectivo, e decoro o meu texto, parágrafo a parágrafo."


O nosso problema - o problema do mundo de hoje - é pensar que somos apenas escafandros, e que devíamos ser apenas borboletas. Por isso, quando dizemos que celebramos a vida e a liberdade, celebramos apenas o medo imenso da morte e ficamos parados na ombreira da escravidão. Sim, um dia a borboleta será livre e voará para a luz da Vida. Mas aqui na Terra, aqui nos dias que passam, são os tempos mortais e preciosos do escafandro. Todas as sabedorias do mundo nos tentam ensinar a viver a vida como uma morte acompanhada (olhem bem para o retrato de S. Jerónimo que aqui trago, Caravaggio mais uma vez). E isso significa que viver é, basicamente, aprender a morrer, e a morrer bem. Para que a morte se faça então passagem, passagem para o verdadeiro mar aberto a que só temos acesso na aceitação diária e nocturna do escafandro.

P.S. A incomodidade que tanta gente tem diante deste crepúsculo do Papa, que morre todos os dias à vista de cada um de nós. Imóvel e sereno, como a pedra de fundação que foi chamado a ser.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Li este livro há 3 ou 4 anos, concordo que é uma história para não mais esquecer. Mostra que, debaixo das aparências de inércia total, pode haver vida e vida pujante! Gostei muito! E também gostei que o recordasses no teu blog. Bem visto!

25/11/05 16:15  

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