28.2.05

Feira da Ladra



Quando aos sábados, pela manhã, posso ir à Feira da Ladra, sinto-me como se tivesse voltado à minha infância. Nem sempre levo dinheiro, e não vou em busca de coisas raras; procuro, e encontro sempre, coisas vivas que não sejam iguais a todas as coisas. É uma alegria triste, igual à alegria da recordação: encontrar as coisas que já tive, aquelas que sempre quis, aquelas que em criança desprezei ou adorei ou ignorei e que me fizeram assim, tal como sou. Consegui uma vez comprar um Mercedes verde, e já me tinha esquecido que uma vez tinha tido um Mercedes verde; de outra vez vi um livro do Pinóquio, e soube que tinha tido medo de um desenho com uma baleia que havia dentro dele; da última vez quase chorei ao encontrar cubos de madeira com letras (não os pude comprar): foi em cubos exactamente iguais (seriam os mesmos?) que aprendi a ler, tinha três anos e perguntava à minha irmã "ensina-me gato, e pato e casa..". Só nunca encontrei a ameixoeira grande que se cobria de flores em Maio mesmo debaixo da janela do meu quarto, a ameixoeira nunca mais.

A feira da Ladra é feita de tesouros simples: encontrei uma vez um desenho original do Maurício, o autor da Mónica, autografado numa toalha de restaurante, pelo preço de dois maços de cigarros; encontrei castiçais iguais aos da minha avó e um estojo de barba igualzinho ao que o avô usava; encontrei postais de Paris em que um senhor chamado Artur escrevia em 1909 a uma tia-avó velhinha e dizia "é tão bonita a França, sigo para Veneza de comboio, tenho saudades da Adelaide"; encontrei uma peça de teatro de 1950 em que o próprio autor, com uma caneta sépia, amorosamente preparou uma segunda edição revista que nunca chegou e ser publicada; encontrei um azulejo oriundo do palácio real de Sintra (pelo menos assim me disse o vendedor) que tem pelo menos quatrocentos anos e que está pintado com um verde impossível; encontrei, e trouxe para casa, um azulejo certamente destinado a um colégio ou a um orfanato que diz "cumprirmos o nosso dever é a primeira lição da vida".

Já trouxe da feira da Ladra colecções da revista dos Jesuítas, a Brotéria, e da revista dos Franciscanos, a Itinerarium; já trouxe livrinhos de cow-boys, e o senhor que me vendeu uma porção deles (e alguns dos melhores, os fabulosos Silver Kane) me disse "lia livros desses quando tinha dez anos e era pastor em Aljustrel"; já trouxe quase todos os livros de Iris Murdoch, de Graham Greene, de Walter Scott, de Alexandre Herculano, de Chesterton e de Plutarco, livros raríssimos sobre ciência e filosofia e sociedades secretas e aventuras; já trouxe a verdade e a mentira, histórias de amor e de desespero, livros que nunca lerei e livros que salvei do lixo como quem resgata um naufragado.

Gosto de ver devagar as pessoas que andam devagar, como andamos quando estamos na praia ao fim da tarde e a maré baixa dá pedrinhas e conchas a quem as quiser apanhar; já vi uma rapariga italiana comover-se com poesias italianas (era tão bonita, magrinha de cabelos pretos em tranças), e duas raparigas escocesas folhear os versos de Pessoa e dizerem "queria saber português para ler isto"; já vi gente que vai comprar livros "bons" pisar Shakespeare, e arrancar folhas às memórias da infeliz duquesa de Longueville (edição de 1826) para chegar antes dos outros a um livro fosforescente, os Tesouros do Louvre ao Alcance de Todos. Já vi partir-se o bule de chá mais bonito que encontrei na minha vida (era oriental e tinha um dragão desenhado). Já vi muita coisa.

Um dia morrerei, penso, e as minhas coisas virão ter à feira da Ladra. Talvez alguém reconheça o meu Mercedes verde.