21.2.05

Cenas dos próximos capítulos



[texto de 22 Fevereiro, à tarde]

Não acredito nem gosto de coincidências, e por isso claro que este quadro não foi aqui inocentemente pendurado no dia seguinte ao de mais uma atarefada eleição. "A morte de Sócrates", de David, e o Cook do Tapor (no momento em que escrevo tenho cinco comentários já) vai-nos ensinando a ver a História por trás das histórias. Sobre isto - sobre a ligação entre os dois Sócrates - que cada um tire as lições que a si próprio quiser dar.

E agora o Dervixe pede bandarilhas, mas eu nem gosto de touradas. Queria só recordar, para quem já se não lembre, que este quadro nos fala da morte do filósofo Socrates, condenado a "suicidar-se" bebendo cicuta (é a bebida que lhe apresentam, a cena passa-se, creio, numa prisão) por castigo de ter "corrompido a juventude" ateniente com os seus ensinamentos.

O quadro assemelha-se, penso eu, à famosa Última Ceia de Leonardo. O Mestre e os discipulos (creio que Platão seja o único que não chora, o homem sentado junto do Mestre) reunidos na refeição mais solitária, e nem sequer sabemos se Judas-o-Traidor está presente, se um dos que puxam as barbas e teatralizam a dor não será um dos denunciantes aos impiedosos juízes. Talvez não importe. Vejam os encarnados e os azuis, as cores que revestem os apóstolos (as cores do tarot, também). E Sócrates-o-Sábio - "eu só sei que nada sei", lembram-se? - assemelha-se também aqui às representações de sempre de Zeus-Jupiter, o rei dos deuses do Olimpo. Não apenas pelas barbas venerandas, pela impressão de masculinidade forte que o seu corpo transmite sempre, desmentindo a velhice branca dos cabelos (ai o que uma crítica gay terá a dizer daquela mão que repousa no joelho...), mas também pelo modo como a túnica impossível lhe descobre o peito e o ventre de uma forma diferente da de todos os outros homens e de todos os outros deuses, também pelo gesto da mão apontada ao céu: eu sou o senhor dos relâmpagos, era o seu significado inicial. Vejam (basta ir ao Google e pedir imagens de Zeus) outras estátuas, outras pinturas. O Tapor saberá decerto ajudar-me aqui.

De modo que a morte de Sócrates é muito mais do que o retrato da injustiça definitiva (a condenação injusta do único Justo), é muito mais do que a homenagem de David-o-pintor ao mundo clássico que em breve será esquecido, a tempo de Delacroix-o-moderno começar a pintar as delícias femininas do Oriente (as mulheres aqui adivinham-se apenas, ao fundo, e não sabemos se são as amantes, as mulheres falsas do carcereiro ou as esposas indignadas das Braganças-de-todos-os-tempos). O que aqui está mostrado é a morte de todos os deuses, querida por todos os homens. A morte da sabedoria grega, do amor cristão, do inalcançável orgulho do paganismo antigo. Sim, Sócrates-o-divino vai morrer de morte matada. A taça da cicuta tem a forma do Graal. Restam os homens, e a desvairada solidão dos homens. Amanhã estaremos sozinhos. Sim, Napoleão pode entrar em cena.