8.2.05

Todos os nomes do nada



Ora então, Kearinn-a-Velada, Clara-a-morena, aqui venho responder à vossa pergunta, atrasado como atrasada anda a chuva tão doce, como atrasadas andam sempre as coisas puras que ainda não nos encontraram. Dia estranho este, sabem, dia em que as máscaras fingem que não mandaram já no ano todo, dia em que mais valia ser diferente, tão negro. Talvez volte a falar disto. Mas agora perguntam-me que busco eu, para que olho quando digo que não é suposto sabermos quem somos. E perguntam-me que faço eu junto da Clara-a-outra, a Clara-terapeuta, e talvez também que faço eu aqui na Ribeira, para onde quero ir afinal quando daqui me for embora.

Não sabemos quem somos, não, e por isso tantos pensam que se andam buscando a si mesmos. Mesmo eu já assim pensei. Como se houvesse dentro de mim uma verdade-à-espera, como se houvesse cá dentro um embrulhinho esquecido nos cantos do natal-da-infância, um rosto-por-abrir, umas mãos virgens de mundo. Pensei, sim, e ainda bem que pensei porque se não fosse assim não me tinha talvez deitado à estrada. E a estrada começa sempre à nossa porta, não é, mesmo a estrada que vai direitinha oa fim do mundo começa aqui, nos degraus da minha porta pequena.

Nós somos a imperfeição. Somos o vaso quebrado. Somos letreiros gravados em línguas que não foram inda inventadas. Índias grandes a que nenhum Gama arribará. Baixios nos mapas de Deus, feitos para navios naufragarem. Músicas tentando atravessar o vazio árctico das almas, rosas mortas. Isso somos, sim, e por isso não sabemos de quem somos senão que somos isto que queríamos saber ser. O resto são coisas nenhumas.

O resto, Kearinn-a-negra, é esta coisa que nos atinge às vezes como o raio do sol inesperado. O resto, Clara-a-esguia, é este escutar-cá-dentro que nos diz que vale a pena valer a pena. O resto é voz que nos chama, e a essa voz chamamos verdade, e chamamos bem. Mas não, não sabemos quem somos, sabemos só que somos chamados a um dia ser finalmente alguma coisa. Não sabemos onde nem como nem quando nem porquê. E por isso tantas vezes fingimos que anda em nós a verdade inteira, que os nossos gestos são claros e as nossas palavras certas. E esquecemo-nos de calar.

O que procuro na Clara-a-outra, o que procuro no jogo-de-falar-verdade em que a terapia se diz, é apenas aliviar a carga. Abrir a mochila dos anos para deitar fora as pedras que a minha avareza acumulou, as areias que no meu orgulho quis ver pedras preciosas, tesouros, coisas-de-mim. Mais nada, sabes, mais nada.

Somos todos tão calados, sabes, por isso disse eu "somos todos alternadeiras". Dizemos coisas para fingir que dizemos coisas. Sorrimos para fingir que sorrimos. Dormimos para adormecer. E sabemos que a verdade anda lá fora, como lá fora andam os monstros a rondar. Odiamos a beleza, sabes, Kearinn, odiamo-la mesmo quando ela nos fala de tudo, vê a arrogância da arte moderna que nos grita "vê na minha fealdade como a beleza era ilusória, vê nas minhas cores imperfeitas como não vale a pena buscar a nascente do arco-íris". Vê. Olha à volta, Clara, e diz-me de que falas tu quando ficas calada contigo. Não sabemos quem somos: mas sabemos, se quisermos saber, que Alguém sabe quem somos desde sempre. Sabemos, como disse um dos meus amigos-do-Tapor, que só nos vemos bem no olhar de um Outro, e por isso tudo o que somos só pode estar de raíz na verdade de um olhar eterno - (e)terno. Sabemos que toda a Terra procura um Rosto.

Não, não sei quem sou nem de tal engano ando à procura. Sou um vagabundo, um peregrino, um caminhante, um exilado. A minha terra não é aqui. A água que bebo faz-me ter sede de novo. Procuro um Rosto desenhado nos céus, na tua mão, em Lisboa vista de avião a pousar, nas letras com que Cervantes terminou o Quichote, no desenho dos bolos do balcão da Confeitaria Cister. Um dia verei a Verdade face a face como agora vejo as coisas nenhumas. Um dia a Verdade olhará para mim de rosto descoberto, e saberei as coisas que podia ter visto e guardado e oferecido e criado e que por minhas mãos desperdicei. Um dia talvez seja abraçado. Um dia.

O resto, amigas, o resto todo do mundo, são coisas de atravessar. Não sabemos quem somos, ainda não. E nos nomes que nos fazemos vêm só todos os nomes do nada.