11.2.05

Em toda a noite a vida



"Here we suffer grief and pain,
here we meet to part again"


THOMAS HARDY, Tess of the D'Urbevilles

Mencionei uma alternadeira para, como sempre, falar de coisas que comigo andam. Podia ter calado o sítio onde a encontrei, só ter dito passei uma noite a falar da Rússia e ela tinha olhos azuis, branca-de-neve. Os leitores teriam seguido adiante e hoje falaria aqui de outras coisas, falando baixinho sempre do mesmo. Mas mencionei uma alternadeira (também mencionei Elizsabetha a Czarina, mas a essa ninguém ligou): pela mão hábil do Rasputine-do-Tapor chegou a primeira farpa, a Gotika misturou-me com prostituição e coisas masculinas, no Tapor já se fala de sombrias mulheres-de-estrada e de inúteis bordéis madrilenos; fui eu, Goldmundo, o ingénuo causador desta agitação, e só a mim posso censurar. Mas seja. Venha a farpa do Rasputine, venha o traje-de-luces do Dervixe, venham a Gotika e os seus Sisters of Mercy. Vamos então à alternativa.

(Deixem-me, antes, contar esta história: quando Gustave Flaubert publicou, nos idos do séc. XIX, a sua Madame de Bovary - o primeiro romance a falar explicitamente do adultério do ponto de vista feminino, e do ponto de vista tão moderno de julgar tudo fingindo que se não julga nada - o escândalo foi tal que também o escritor acabou julgado, e julgado num tribunal severo de togas negras e maridos urrantes, acusado de difamar sabe-se lá quem, sabe-se lá o quê. Intima-o o juiz, levante-se o réu e diga ao Tribunal quem é a Madame de Bovary! E a resposta imortal de Flaubert: Madame de Bovary, c'est moi!)

Pois eu, Goldmundo, gosto às vezes de alternadeiras, sim, e não gosto nunca de prostituição mesmo quando gosto de prostitutas. Como distinguir o que anda tão próximo? Talvez com a ajuda da Nastassja Kinski que ali está em cima, junto com o Polanski realizador que dela fez uma Tess como nunca o Thomas Hardy sonhou sequer. Não trocava aqueles olhos fundos, aquele corpo sempre velado, aquelas mãos que se não deixam ver (tão sérias), por toda a crueza de todos os bordéis do mundo. Nunca troquei a noite toda por um momento de luzes falsas. Às vezes (só às vezes) tenho pena de ser assim, e uma noite descobri que tenho pena de ser assim porque me fui fazendo também uma alternadeira. E por isso vou falar agora como se a Nastassja me fitasse, tão pura. Como se vocês me pagassem um cocktail azul para vos entreter.



Lembro-me (lembrar-me-ei sempre) da minha primeira humilhação pública. Tinha treze anos. Estava numa aula de "Religião e Moral". Tive o azar de ter como professor um padre progressista, que é assim um bicho como um coelho carnívoro. Logo na primeira aula, enquanto lá fora os estudantes mais velhos enfrentavam com pedras a polícia de choque (não, já não era a polícia fascista, era a polícia revolucionária), o homem sentou-se em cima da secretária, fatinho cinzento paisano e sandálias de franciscano acomodado, e disse "sou padre, jovens, mas isso não quer dizer nada. Falo a vossa linguagem, sabem? Não acreditam? Ouçam: merda, merda. Hã, falo ou não falo?". Pois. Decerto falava.

Nesses anos fluidos os programas da escola eram também vagos, e as aulas de Moral eram ocupadas com os "problemas" da juventude. A "política" e as "gajas", como dizia o bom do padre piscando os olhinhos turvos, enquanto nos tentava convencer, pela calada, da cristandade do socialismo e da santidade dos "operários". E uma vez anunciou que o tema ia ser "pornografia".

Nesses anos de libertação os quiosques andavam cheios de lixo pornográfico e de jornalecos políticos. O "Povo Livre" e o "Avante", que se vendiam às carradas, não disputavam espaço às revistas cor-de-rosa nem às de informática nem às "Marias atrevidas", não. Era porno mesmo. O padreco rejubilava. Eu estava, lembro-me bem, a jogar a batalha naval com o Zé Fernando. Devo-me ter distraído cinco minutos. "E tu ao fundo, o que sentes?" , berrou a voz gorda do padre-que-não-queria-dizer-nada. Eu? Sim, era comigo, Goldmundito se assim me posso chamar. Ai, já nessa altura nunca sabia bem o que sentia. Ó rapaz, que sentes quando vês essas revistas, essas gajas, essas coxas, hum?. E eu que ainda não era uma alternadeira, sabem? Que pena, pensei, vendo os olhitos cobiçosos do s'tor: "Revistas? Nada, S'tor. Não sinto nada, S'tor. Desculpe."



Deves ser paneleiro, disse distintamente o padre, e passou a conversa ao Valdemar, que tinha dezassete anos e até já fumava charros no balneário. Será?

Passaram muitos anos e eu cresci, ou pelo menos tentei. Enamorei-me aos dezasseis anos. Aprendi a chorar aos dezassete. Casei aos vinte e dois. Algumas coisas nunca foram simples. Andei por aí. Com vinte anos não tive coragem, depois de uma noite de copos, de me afastar de um grupo de amigos que insistia em festejar não me lembro o quê na Rosette, a casa de meninas cantada tempos antes pelos saudosos Taxi. Como na aula do padre, continuava a não sentir nada, e continuava com medo da humilhação. Entrámos para um hall forrado a veludo, reparei numa revista pousada, num candeeiro incongruente. Esperámos. Chegaram quatro raparigas (duas mais altas que eu), e soubemos que éramos nós a escolher. Consegui que o velho princípio da exclusão de partes decidisse por mim. Não me lembro do nome dela, era de Viana do Castelo e eu perguntei-lhe se não preferia conversar. Ofendeu-se. Disse-me que a culpa era das brasileiras, que punham os homens doidos mas eram ladras. Despiu-se (nunca tinha visto uma mulher despida). Não era muito bonita. Não era muito feia. Era tão insípida como um quadro da Paula Rego. Ou melhor, ela nem sei como era, tudo aquilo é que era um quadro da Paula Rego. Convenci-a de que tinha bebido demais. Aprendi que as meias-horas ali andam depressa. Saí e disse aos meus amigos "temos que voltar". Sempre fui um cobarde. Depois a Rosette passou de moda.

Tantos anos passaram, tantas coisas. Não quero entrar em pormenores. Aprendi (tarde, más horas) que é possível encontrar um rosto que se não desfaz em pó quando dele nos aproximamos. Que é possível estar calado sem calar nada. Que existem coisas como acordar feliz. Aprendi que as coisas passam por nós e que nós não passamos delas. Guardei sempre comigo o olhar fechado da Nastassja Kinski. E aprendi que vejo as pessoas como se lhes tocasse, e por isso quando às vezes me apetece tocar em alguém é só porque a queria ver mais de perto. Não sei se os Sisters cantam estas coisas.



Aos trinta anos namorei-me de me enamorar. Aprendi devagarinho a fala e o corpo das mulheres como se tivesse voltado à escola. Disse vezes demais a palavra "sempre". Depois fui-me calando, como se fosse um pôr-do-sol de Setembro. Aprendi a guardar as coisas que não tenho como coisas ausentes que só assim podem ser minhas. Os amigos fáceis dos tempos da Rosette rumaram a casamentos e divórcios a que tentei não assistir, e nunca mais soube deles porque com os mortos não quero nada. Encontrei amigos verdadeiros, ou antes foram-me eles encontrando. Uma noite, por causa da Gotika, recomecei a escrever. E aqui estou.

Prefiro passar uma hora com uma alternadeira a pedir a um amigo o favor gratuito de me aturar. Contas são contas, mesmo quando nada há para contar que valha a pena. Mas não tenho o hábito de as visitar. É muito raro querer falar. Basta-me geralmente ouvir, ou escrever, e há a música e há afinal as pessoas todas (os livros todos). Às vezes vou para as ouvir, e elas dizem sempre a verdade se for a verdade que lhes pedirmos. Julgo que a vida as obrigou a isso.

Isto vai muito grande, e estou cansado. Outro dia continuarei, e hei-de falar das coisas que se aprendem do mundo, "a Etelvina fugiu com o Vítor da Ourivesaria, o coxo, mas o filho veio-se a saber que era do russo porteiro do J...; tinha sido despedida onze vezes pelo Esteves patrão, aquele a quem uma vez sairam vinte mil contos no Estoril e não quis mais nada senão ir para a França com a Xica brasileira". Mas somos todos a Etelvina, somos todos o Vitor coxo. Não aprendemos nada que não pudéssemos já saber. Só queria recordar, a quem achar que estou a ser pouco masculino e que sexo é sempre sexo, como coxa é sempre coxa, a frase grande de um dos primeiros discípulos de Freud: "como é evidente, o pénis é essencialmente um símbolo fálico".


(Roubei o título deste post à crónica de hoje, no Público,
do João Bénard da Costa. Desculpe, Senhor Dr.)