20.2.05

O Tigre e o Dragão, por Goldmundo Ribas (Parte I)

Ao nobre Klatuu-dos-Gelos e ao múltiplo Tapor dedico
esta humilde fábula sobre desencontros e imaginação.
À Gotika, que talvez saiba do que estou a falar,
peço a indulgência que costuma acompanhar a sua pureza royale.

"Je suis la Guerre Civile. Je suis la Bonne Guerre"
HENRI DE MONTHERLANT



Recordo ainda com emoção (a que não é estranha a memória do generoso perfume de Angelica Hidalgo) o Inverno em que a noite, ou a falta dela, me conduziram ao rasto fulvo e inquietante do Tigre. Foi pouco antes do aparecimento, em Guardanapos, da inesperada e ruidosa Confraria do Dragão; agora, que a guerra entre os potentados ameaça incendiar as planícies largas de San Cristobal, resta-me lamentar ser um dos causadores involuntários da tragédia e esperar que o discernimento ainda fale mais alto que a rude fortuna das armas. Receio, porém, que seja tarde: o Tigre e o Dragão medem-se já, e só eu posso saber o que perde verdadeiramente o mundo com este confronto irremediável. Aprendi, tardiamente, que os homens são jardins de caminhos que se bifurcam; e que o mais alto destino é o de Pontifex, de fazedor de pontes, mesmo de pontes que não levem a sítio nenhum. Falhei aqui, mais por preguiça do que por cobardia: e quero ver nestes apontamentos mais a sentença que me condena do que o discurso que me justifique.

Sempre fui afortunado. O meu leve e monótono trabalho na Segunda Repartición de Pesos y Medidas raramente interfere no prazer clandestino de percorrer ociosamente o mal-afamado barrio chico de San Cristobal de Guardanapos, desprezado pelos turistas: ao fim da tarde, mal o consentem os imprevisíveis óculos de tartaruga de Laura Tyniosa, verifico com devoção o estado dos bens que a República quotidianamente me confia - quatro canetas envelhecidas e um carimbo que reproduz o heráldico orgulho das armas provinciais de Guardanapos (em campo de prata, duas mãos de mulher envoltas na legenda Lealdade e Bravura); embrulhado no sobretudo pardo que recebi de Jose Frias - juntamente com uma dívida de jogo - deslizo pela gasta calçada que abre para os obscuros botequins da Calle Duque de Consolas; na habitual terceira mesa de mármore da Meson Tellier, diante de um ponche duplo e da sublime tradução de Von Geertz do imenso Tratado da Dúvida de Huang Feng, contemporâneo de César, aguardo que a reminiscência obscena dos papéis amarelados da repartição se dissolva na sabedoria alquímica dos últimos raios do sol austral; depois, já noite fechada, enquanto na Plaza del Pueblo batem com estrondo os portões de bronze do Regimento de Caballeria de Puros, subo os cinco lances da escada fria que conduz ao meu quarto para trocar ansiosamente a invisível roupa diurna pelo negro capote, o chapéu largo e o punhal de mortífera prata do meu bisavô Umbelino Ribas el cisnero. Até ao amanhecer, não sou mais o escárnio dos homens.

Nesse tempo entrara a frequentar, discretamente, os vastos salões púrpura do Castillo de Tinieblas: a Gotika - o meu amigo Úria Menendez julgava tê-la encontrado muito antes, em Paris, sob o nome de Comtesse de Saint-Etienne - era nessa maravilha a anfitriã sempre velada, e imaginei imprecisamente, sob o seu amplo e perturbador manto branco aveludado, um vulto esguio em que cabelos rebeldes emoldurassem olhos a que atribuía um etéreo dourado: admirei demoradamente antes da guerra, no Athaeneum de Potsdam, uma pouco conhecida versão da Lady of Shalott de Gabriel Rossetti que brilhava precisamente nessa cor ingrata, e tenho razões para crer que o pré-rafaelita não tomou então para modelo, como se julga, a insignificante palidez da filha de Byron.

Éramos muitos os visitantes das Tinieblas, e as vastas horas da noite passávamo-las evocando lendas macabras de sangue e de lascívia, ao som de músicas impossivelmente negras e de um quente e abafado sussurro tanto feito de álcool como de imprecações em várias línguas. A espaços, a Gotika sentava-se brevemente para deixar a um ou outro recém-vindo um conselho, ou uma advertência, em que não podíamos deixar de pressentir a antiga sabedoria das nobres filhas de Lilith; mas, mais geralmente, as portas do Castillo Alto abriam-se sozinhas para a estranha multidão de visitantes ensimesmados. Era a noite de Guardanapos, sim, a noite do mistério maior.

Sobressaltei-me quando na mesa vizinha (escutava então uma inútil confidência de Jesus Ortega) se instalou pesadamente o vulto enorme e encapuçado do Tigre. Notei as suas mãos enluvadas semelhantes a garras, e instintivamente confirmei que o punhal de prata não largara a sua baínha. Confirmou-me Jesus tratar-se do célebre caudillo de Tormentas, e pude medir a sua inquietação no tremor que agitou o copo ainda cheio de aguardente; mal foi possível pretextou uma indisposição súbita e fez aparelhar o seu cavalo, deixando-me a mim, Goldmundo, hesitando entre a indelicadeza e a mais funda apreensão. Olhei a sombra que ocultava o rosto do desconhecido e acenei-lhe com uma garrafa acastanhada e baça. La sangre, murmurou o Tigre, negra es la sangre del muerto, negros son mis mensageros...

Seria fastidioso repetir aqui como escapei nessa noite às garras de aço (a Gotika estava ausente, dizia-se que por ser lua nova) e como lentamente cheguei a merecer uma consideração que julgo próxima da amizade por parte do solitário assassino de Los Placeres. Uns meses bastaram para que, quando fugazmente nos encontrávamos no Castillo, deixássemos a turba entregue às suas canções embriagadas e escolhêssemos repousar numa das mesas maiores; imune aos efeitos entorpecedores do álcool, o meu irascível companheiro narrava as suas estranhas viagens até à Rússia e aos Otomanos, ou calava-se numa contemplação interior de que só se arrancava para citar de memória um esquecido verso latino ou uma meditação alpina do filósofo de Sils-Maria. Nunca soube se eram verdadeiros os rumores que sobre ele corriam entre a criadagem; a sua presença atraía frequentemente a própria Gotika, que parecia conhecê-lo ou adivinhar-lhe alguns propósitos mais sombrios: e muitas vezes tive o privilégio de escutar as palavras cortantes e firmes da Señora Noche (assim lhe chamavam os índios), sentada disciplicentemente junto de mim e fazendo rodar distraidamente, nas magras luvas de renda, uma pequena e experimentada adaga tunisina. Até o Tigre se sentia então pouco à vontade.

Ausente numa das suas demoradas expedições de caça (tremo ao pensar quem serão as incautas presas do imperturbável), o Tigre tardou em aperceber-se da chegada à cidade dos sicários do Dragão. (Continua)