26.2.05

Outro eu, mim mesma (I)



Gosto mais do fim do que dos princípios, disse eu quando a Ribeira começou, tão calma. Há um ano (fez ontem) entrei na estrada que aqui me trouxe. Não sabia então que tanto havia para andar, que as estradas começam no primeiro degrau da nossa porta pequena: mistérios do mundo maior. Há um ano, pela primeira vez, entrei no mundo dos blogs, li os primeiros textos, vi por trás de coisas caladas coisas que me deram para escrever. Comentei brevemente um post da Gotika; falei de coisas que lhe não respondiam a ela, que a mim só diziam respeito. A Gotika respondeu, outros falaram. Palavra puxa palavra, habituei-me a andar aqui como quem se faz espelho ou rosa ou labirinto. Ribeira negra foi nome de tudo o que eu podia ser.

Sabes, Eu-mesma, este post é para ti. Diários fecham-se a sete chaves, alguém amargo aqui me dizia há dias. Sete chaves são seis a mais, que sempre perdi a chave primeira do diário que até mim me levasse; por isso nunca os meus diários tiveram mais que uma folha, nunca foram além de dizer não sei que se passa comigo. E por isso é a Ribeira o sítio onde aprendo a ser o que sempre fui: toda a vida fiz as nuvens chover, mais-nada.

(Não há coincidências? Estou num café, começou agora a mais triste das árias de Bach, lembro-me de a escutar uma vez e outra e outra aos catorze anos, sentado na janela grande de pedra da biblioteca de minha casa, foi nessa altura que me deixei acordar pela noite, e dava a janela - leste o meu post anterior? - para árvores velhas e por trás delas para a lua e o tanque de pedra onde quase sempre os gatos cantavam)

Quem quiser compreender que compreenda, tu saberás de que falo e sim, quanto à tua "provocaçãozinha" muito pouco tenho a dizer. Ali em baixo, no post sobre animais em que se fala de tanta coisa, vieste perguntar "então e os homossexuais, o casamento?". Disse eu que me desses tempo e vodka, mas ainda agora não sei, se soubesse talvez não andasse aqui. Por isso trouxe comigo a Danaide de Rodin, lembro-me de a ver em Paris (será a mesma?) num Janeiro de chuva no palácio onde Rilke habitou. É bom perdermo-nos em Paris, é pena a vida perder-nos. Mas sobre a vida sei poucas coisas.

"Expões-te demais", disseram-me também. Eu sei. Sou moreno por fora, mas por dentro um daqueles ruivos para quem uma manhã de sol já foi sol demais. Não sei se fui sempre assim. E agora, à minha volta, a Callas chora no lamento imenso da Madame Butterfly.

Perguntas-me de heranças, arrendamentos, coisas estranhas a que chamamos "direitos". "Direito à indiferença" dizem cartazes por esta Lisboa fora, e sim, a indiferença tem sido muitas vezes o mais que posso esperar, mais fácil é ser passageiro clandestino. Que cada um siga os seus caminhos, caminhos de César ou caminhos de Deus. Mas disseste também "Deus não discrimina", e era sobre isso que queria falar.

Vai longo este texto, Eu-mesma. E começando a falar tenho que falar muita coisa. Sim, vou ser fiel ao que me prometi quando a Ribeira nasceu: este há-de ser o lugar da história verdadeira. Um ano, não é? Um ano tanto tempo, mas de muitas coisas não pude ainda dizer nada: a verdade é que também ninguém me tinha perguntado (o Klatuu falou uma vez em "sensibilidade feminina", e para mim isso é um pleonasmo). Amor, casamento, sexualidade, Deus? Sim, muita coisa. Deixa-me ir devagar. Vou descobrir o que penso disso, contando-te coisas que me foram fazendo assim, e que nunca contei a ninguém. Não posso abusar do vodka. Mas sabes, não há nada a dizer que não esteja dito já nos ombros vencidos da Danaide.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

E parabés à Ribeira! Escrevi em tempos um poema sobre essa estátua... vou ver se o encontro... KLATUU

26/2/05 20:24  
Anonymous Anónimo said...

«parabéns» (Isto tá meio estranho na caixa dos comments... andam práqui «mexidas»...) KLATUU

26/2/05 20:25  

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