2.3.05

Outro eu, mim mesma (III): "o amor não tem, ele é"



Pelo caminho que sigo já vi que vou demorar. Talvez assim seja melhor. E por isso hoje (um bocadinho hesitante) trago comigo a vitorianíssima Lua de Mel do Pintor, de Lorde Frederick Leighton (pintado em 1864). Ora aqui está um amor tranquilo, simbolizado nas férteis laranjas que atrás da mulher se vêem (lembras-te dos primeiros Madredeus, O Pomar das Laranjeiras? tão igual...)

Lorde Leighton só nos deixa entrar aqui depois de a história acabar, que nessa época as histórias todas rematavam com o "casaram e foram felizes para sempre"; quem quiser saber muita coisa sobre o pintor (talvez as coisas que ele não pinta...) terá de ir reler folhas antigas ou ficar aqui, nesta tarde que talvez seja italiana e em que nada acontece diferente do pulso dela, tão frágil (o sol no pulso dela). E esperar que o Pintor nos mostre o desenho (porque é que eu sinto que são ruínas que ele retrata?)

O Pintor desenha a lápis. Lorde Leighton deu-lhe um lápis para a mão porque se lhe tivesse dado pincéis o Pintor teria sentido vontade de os mergulhar no corpo dela para ir buscar as tintas vivas: é só dela que lhe vem a força e a vida, e por isso o Pintor está agora tranquilo e pode agora desenhar: ele já a TEM, ela já É, nele e por ele. Como são diferentes o homem e a mulher na época vitoriana... Serão? Ou o nome que dão ao quadro está errado e isto é afinal A Lua de Mel da Mulher do Pintor, ou A Lua de Mel de Mary? Penso que o nome não está errado, não. Lua de Mel do Pintor, só isso, e se reparares bem A Luz ao serviço da Sombra (os rostos deles). E com tudo isto o nosso Lorde Leighton (como o Pintor que ele pintou) foi aqui um homem fiel a si próprio. E era aqui que por hoje eu queria chegar.

Sempre me mantive fiel a mim mesma, disseste. E eu penso no meu navio nocturno de ontem, penso no que escrevi sobre o barco que não busca mais que o longe que o justifique. E quando a Lucrezia me fala no amor que não tem mas é, creio reconhecer o gosto juvenil pela liberdade, o amor de que geralmente os poemas são feitos. Mas o que é a liberdade do navio senão a disciplina do leme, a servidão dos mastros, o esforço permanente das velas inchadas? Que seria da viagem se os mastros se libertassem? E por isso eu canto a liberdade dos mares sabendo que ela se constrói sobre a prisão das tábuas. E por isso não quero ser fiel a mim mesmo, mas a tudo o que seja por mim maior do que eu.

E vou voltar ao casamento, Eu-mesma. O casamento não é nada se não for a aliança inteira: façamos um navio de nós. Por isso não é o amor pelo outro, mas o amor pelo navio, e o amor pela viagem, e o amor pelo além-mar, que nele casamento se consagram e por ele, casamento, se elevam. E o amor ao navio grande não sabe de luas-de-mel.

Hoje fico por aqui.