10.4.05

Les jardins sauvages (III): Come sail your ships around me...



Tenho vindo a falar de ver, e tenho vindo a falar do amor. Por isso é que a Ribeira foi sempre um pedacinho da minha história, e sempre um pedacinho da mesma história. Não sei se sei ver; porque não sei de ninguém que me veja, e só nos vemos no olhar de um outro. Não sei se sei gostar; porque não sei se alguém gostaria do que trago escondido sob as máscaras e o pó de tantos dias inúteis. Mesmo que não pareça, nunca falei de mais nada; e mesmo que não pareça, nunca cheguei a dizer coisa nenhuma.

Mas agora vou directo ao assunto. Afinal já estou crescido, não é? E só as crianças gostam de jogos de roda.

Tenho andado a fazer terapia há uns meses, e nunca fui muito além de dizer o que sempre soube: o amor não existia no mundo em que me nasceram. Mas isso é uma história vulgar. Não tive de rivalizar com um Pai, demasiado poderoso para ser desafiado, demasiado ausente pare ser temido. Não tive de me libertar de uma Mãe, demasiado nocturna para ser amada por uma criança, demasiado calada para ter consciência da força terrível que a sua fraqueza tinha. Não tive uma rua para brincar nem colegas de escola que me magoassem, nunca caí de cima de uma árvore nem apanhei com o cinto nem fui fechado num quarto escuro (isto é mentira: fui fechado num quarto escuro pela D. Amélia, que era uma espécie de Dama-de-Companhia ou Governanta ou Bruxa Má... sim, nasci na upperclass, não tenho culpa. E a D. Amélia uma vez amarrou-me dentro de um lençol como se eu fosse uma múmia e deve ter sido a única vez que gritei. Tinha três anos.)

Ora, mas estes são os princípios da vida, não é? E os princípios da vida não são iguais ao princípio das histórias. Vamos ao que interessa.

Quis ser uma menina, e nunca dei por ela até ser tarde demais. Não era para ser como a Mãe, ou a Avó, ou a Cozinheira Velha ou a Bruxa Má. Nem sequer era para ser como a Mana, de quem o Pai dizia "pareces um homem, nem arranjas um namorado". Era talvez para ser a Cinderela, o Capuchinho, a menina que adormece na cama dos Ursinhos, a Dorothy de Oz ou para não ser ninguém. Nem sabia ao certo o que era uma menina, sabia apenas que as histórias que eu lia gostavam delas. E eu queria que pelo menos uma história gostasse de mim.

Ao crescer tive de ir fingindo que me sentia bem em ser um rapazito. Disso já falei. Só não consegui aprender o nome dos jogadores de futebol. Mas aprendi a dizer palavrões, a distinguir um Austin de um Mercedes, a olhar de lado para as raparigas, a beber cerveja, a fazer outras coisas inúteis. Não sei se na adolescência (catorze, quinze anos) algum deles descobriu que eu era um impostor. Penso que soube sempre ser suficientemente inteligente para isso.

Quando comecei a crescer, comecei também a encontrar o mundo estranho da homosexualidade masculina. Não tive nenhuma atracção por ninguém. Eu desprezava-os (como podia ser de outra maneira?). Mas fui, como hoje se diz, "assediado". Esses homens (porque eram homens "feitos") confirmaram-me na minha ideia de que não queria crescer para me tornar um deles. Talvez o divórcio do meu pai, que aconteceu por essa altura, tivesse contribuído para uma imagem deplorável que ainda agora conservo. Não gosto dos homens. "Demasiado sexo", dizia ontem a Gotika. "Demasiado vazio", acrescento eu; e bem sei que o vazio anda também dentro de mim.

Depois foi acontecendo uma coisa estranha: as raparigas que comecei a encontrar não se consideravam iguais a mim, mas (e isso era terrível) opostas a mim. Isto é, tratavam-me como a um rapaz em competição com outros rapazes. Queriam saber a marca da minha mota, se gostava de tennis, qual era a minha discoteca preferida (depois de ter sido um impostor no meio de outras crianças, fui um impostor no meio dos maiores betinhos do Porto, upperclass cada vez mais).

(e aqui finjam que está uma página rasgada: é o meu casamento, e eu não quero falar daquilo que me não diz respeito só a mim).

Lentamente, dividi-me em dois, como às vezes as ribeiras fazem (ascendente Gémeos, tão fácil dividir...). Parte de mim saiu da minha vida de todos os dias, das gravatas que usava, da carreira que ainda ambicionava ter, e como um fantasma que vai tomando forma foi-me levando para as cercanias da noite. Comecei a andar calado. Comecei a ouvir música, eu que não ouvia música desde que aos 17 anos me proibiram de chorar. Comecei a sair de casa, apenas para andar em ruas antigas e olhar a lua e às vezes ir mesmo para junto do mar. Comecei a olhar para mim e vi que uma parte - a maior parte - era apenas um espantalho, e o resto não era mais do que um rapazito zangado e assustado, sim, muito assustado. Devia ter, nessa altura, uns vinte e oito anos.

Entrei naquilo a que os médicos chamam "depressão". Perdi o gosto pela minha vida dos dias, e não tinha nada na noite que me chamasse para fora de mim. Devagarinho, como devagarinho fiz tudo na vida, experimentei todas as coisas que normalmente se experimentam aos dezasseis anos. Mesmo nessas falhei, sou tão desajeitado de mãos que não soube nunca enrolar bem um charro. As paredes começarama desabar à minha volta como aqueles castelos que se desmoronam nos filmes de terror. Deixei de acreditar em Deus. Deixei de acreditar em tudo o que acreditava (e ainda bem). Deixei de ser capaz de sentir o poder, fosse o poder dos outros fosse o meu próprio. Deixei de ser capaz de procurar pessoas e companhia e luzes e coisas para fazer. E não era uma pessoa sozinha, estava casado e tinha filhos pequenos e os tempos da minha casa grande e das governantas e do rapazito que servia o jantar de luvas brancas já era apenas uma recordação em fotografia amareladas. Não havia dinheiro nenhum. As pessoas diziam-me que me fosse tratar, e por tratar queriam dizer tomar comprimidos. Saí de casa.

A única coisa que eu sabia era que tinha de me deixar cair. O que acontecesse quando atingisse o fundo era uma coisa que se veria na altura. Talvez fosse mesmo o fim, talvez não. Talvez pudesse continuar. Cheguei (também já falei nisso aqui, acho) a estar uma noite de chuva numa ponte de ferro a pensar que nada valia a pena, nem mesmo acabar.

Muitas coisas aconteceram depois, senão não estaria aqui hoje. Agora vivo em Lisboa. Os meus filhos já não são tão pequenos. "Então?", dizem normalmente os que me ouvem, "que queres agora e que te falta?". Pois é.



[e mais uma vez Caspar David Friedrich...
agora A árvore no Inverno, 1829]

2 Comments:

Blogger FMS said...

Eu, por exemplo, já fiz mais com 33 do que 75% da malta aí fora com 60. E ainda ando à procura duma coisa que não pode ser encontrada. Só sei que é gaja. O resto escapa-me. Tanto pode ter 16, como 49. E os mundos que produzo não me chegam. Talvez tenhas feito mal sair. Dependerá de como saíste. Não creio que precises de forma alguma de terapia.

11/4/05 00:58  
Anonymous Anónimo said...

A "Butterfly on a wheel" trouxe-me aqui.Hoje até estava primaveril mas ao ler algumas páginas do seu caderno tive de levantar-me, para conseguir respirar melhor... e limpar as lágrimas. Não percebi como vim parar aqui. E muito menos ter comentado o que não gosto de fazer. De qualquer forma está feito.

3/3/09 00:07  

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