10.4.05

Ribeira dos murmúrios



Às vezes fico calado, e às vezes calo-me no preciso instante em que mais coisas tinha para dizer. O engraçado é que se alguém, nesssa altura, me disser "fala" ou me perguntar "o que foi", fico igualzinho ao meu velho leitor de CD's quando acha que nenhum disco tem lá dentro. A mesma coisa acontece se, quando eu estou a chegar perto de falar, me disserem cedo demais "e porquê?". Também a verdade é que não sei muito bem que coisas seriam essas que havia a dizer. Sei que não são coisas pensadas (as coisas pensadas digo-as bem), e talvez não sejam, sequer, coisas. Seriam a maré alta se houvesse marés em mim. Mas eu, que sempre quis ser o mar, sempre fui só uma ribeira pequena. Ribeira negra, ribeira dos arcanjos, ribeira dos murmúrios. Mas não entendo a língua dos anjos e as ribeiras não sabem ter marés.

Às vezes gosto de alguém. Não é um gostar parecido com gostar de chocolate, ou de viajar até à Índia, ou dos filmes do David Lynch. É um gostar que é parecido com uma maré baixa. É um gostar em que me sinto pequeno, e sem vergonha e medo de ser pequeno. Em que a água de que sou feito (eu, que sou de um signo de fogo e de um signo de ar, mas um dia explicarei isso) fica transparente como aquelas praias inventadas para crianças em que as conchas estão ao alcance do braço e não, o peixe-aranha não anda lá. Às vezes gosto de alguém como se tivesse chegado ao mar.

E às vezes percebo que as pessoas têm medo de que as coisas cheguem ao fim, e preferem por isso não as começar. E têm medo das coisas caladas e por isso fazem tantas perguntas. E gostam, em mim, principalmente daquilo que lhes parece ser semelhante a elas.

Coisas para dizer, pessoas a gostar. Maré alta, maré baixa. Depois não acontece mais nada. Não chego a falar. Não chego a tocar. Talvez as duas coisas não possam acontecer ao mesmo tempo, não é? Talvez não esteja a correr ao encontro de mar nenhum. E isso em si não me faria mal saber. Mal, faz-me sentir ver que as coisas vão embora. Tenho mais pena de uma casa antiga ou de uma árvore derrubada do que um amigo ou amante que perdi. É que nós, humanos, somos viajantes, e as coisas foram feitas para durar como sinais nas encruzilhadas. Mal, faz-me sentir uma pessoa a doer. Uma pessoa a doer não é bem uma pessoa magoada. É uma pessoa que diz (como ontem ouvi) "não tenho nenhum objectivo", ou que diz (como ontem ouvi) "não sei se consigo suportar isto".

Ah, e depois olham para mim e perguntam "que tens, estás tão calado". Não estou, não. Estou a falar tanto que nenhuma palavra consegue sair. Estou a sentir tanta coisa que não sobra espaço para fazer um gesto. Se fosse uma pessoa normal estava a chorar (mas não, porque as pessoas normais não choram). ´

Há pessoas que precisam, acho eu, de tocar e de ser tocadas. Outras há que não precisam de nada ("embora isso signifique não viver", também me disseram ontem). Eu precisava de ser escutado devagarinho. E aí, sim, aí as coisas não iriam embora, o amor seria igual ao que eu sou. Mas é difícil, a ribeira dos murmúrios.