22.2.06

Terceira vida, coisas pequenas
Dentro de um mês o sol entra no signo do Carneiro. Renovação da Primavera: pouco depois fará a Ribeira dois anos, farei eu uns impossíveis quarenta e quatro. E vou entrando na minha terceira vida, eu que ainda nem aprendi o que a primeira me vinha ensinar.
Gostei muito da primeira vida que tive. Começou quando nasci, ou talvez viesse um pouco de trás. Várias vezes contei aqui histórias dessa história: a casa de pedra e de buganvílias, a janela que dava para o muro onde havia gatos e fantasmas, a criança sossegada que sabia que as coisas grandes estavam nos livros, que os crescidos eram só uma coisa a passar. Tento voltar a essa vida quando me escrevo em coisas mais tristes, tento voltar a sentir a pedra e o céu. E não acredito que o Douro tenha ficado tão longe.
Da segunda vida gostei menos, e dela pouco sei falar. Não sei bem quando começou, há coisas de que mal me lembro: desassosseguei-me calado, vivi só de andar parando na espera. Casei aos vinte e dois anos, e guardo a recordação de um dia de não chorar; enamorei-me aos trinta e cinco, e soube que a noite não nos deixa mentir. Fiquei quieto a olhar o tempo como se o tempo fosse o rio maior. Soube que havia outras pessoas no mundo, e isso talvez me tenha feito mal.
A terceira vida não sei o que possa ser, ando nela como se andasse a acordar. É estranho pensar que quase de certeza já passou muito mais de metade de tudo, que as coisas que não fiz talvez já as não venha a fazer. É estranho ser esta mistura de criança assustada e de corpo que já não será forte, perceber que os crescidos são mais novos e que as outras crianças cresceram demais. Mas vou gostar muito desta vida que tenho. Pela primeira vez não espero nada, nem a verdade dos livros nem a intimidade das almas. Deixei de chamar os anjos e de temer os demónios, e talvez seja um mau caminho; sei o que quero e que muito do que quero não vou conseguir. E há-de haver coisas de que não estava à espera. Vou fazer quarenta e quatro anos e de momento vivo em Lisboa, e de momento vivo. Já devo ter feito coisas pela última vez. Há-de haver coisas que ainda hão-de ser a primeira.
E todas elas são coisas pequenas.

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Acho que nunca sabemos o que possa ser a vida...

é engraçado que digas que vais na terceira vida... nunca consegui contar as minhas... (nem no presente sei ao certo quantas tenho...)

"de momento vivo"... que lindo gold.!!!

também me dei conta de que só se vive quando não se espera... os momentos (a vida) é feita de coisas pequenas... "se não formos fiéis nas coisas pequenas como seremos nas grandes" - li um dia...

quarenta e quatro - o ano da capícua!! ouvi dizer que as capicuas dão sorte!!!

(e a minha intuição feminina diz-me que vais ser muito feliz!!)

"de momento vivo em Lisboa"- quem sabe onde viverás daqui a uns momentos vividos...

Abracinho

22/2/06 18:26  
Blogger musalia said...

e de coisas pequenas se enche a vida ou as vidas :) que temos, que passámos que nos esperam ainda.
'de momento...', nunca sabemos a nossa morada seguinte, não é?
beijos.

23/2/06 13:06  
Blogger Confessionário said...

Porque tem de ser aos 44?

Eu vejo que a nossa vida percorre diferentes e variadas etapas. Todas elas são interessantes, mas dependem da forma como as olhamos. A mim parece-me que a forma de olhares para esta nova etapa é a forma de olhar mais madura... Já sabes mais acerca da vida e daquilo que vale realemente a pena.
Um abraço de parabéns adiantados!

23/2/06 15:05  
Blogger Silvia said...

É nas coisas pequenas que reside a grandiosidade da beleza.

Sabes isso.

A luz.

*

23/2/06 17:08  

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