15.2.06


Veneza

Nunca fui a Veneza e não sou capaz de querer ir. Gostava tanto. Mas não gosto de mim o suficiente para receber o beijo das águas, o lento abraço da pedra. A Veneza só podia ir se comigo levasse já Veneza inteira.

Parece estranho, não é, mas não sei ter coisas de fora. Não tenho amigos nem namoradas nem saudades nem ideias nem esperança. Não, não é isso em que estás a pensar, não tenho. Há amigos sim, e a namorada ou a ausência dela, e a esperança e as ideias, há até a saudade também. Tudo isso eu sou mas nada disso eu tenho. Nunca tive mais que o nunca ter.

Sou às vezes igual a alguém, às vezes coisa calada. Às vezes sou uma história que não tem princípio nem fim, ilha inútil onde ninguém há-de andar. Sou. Isso sei que sou, e não sei se sou mais que esse saber tão grande. Sou as coisas todas que me tiveram, as palavras em que toquei, os gestos que me disseram. Guardo coisas como se guardasse rebanhos de chuva. Perco coisas como se a noite caísse em si. Mas não tenho, e nunca tive, o sentimento de ter coisa alguma, nem sequer o de ter sentimentos. Vejo-me ao ver o mundo, como se fosse eu a água e ele o reflexo de um outro mundo em mim. E que seria de mim se em Veneza fosse igual a ela, fosse ela uma coisa que me tocasse baixinho. Que seria de mim sozinho em Veneza, e à minha volta a pedra e o seu amor quieto pelas águas mortas. Já é tão dificil ser isto que sou num mundo em que há Veneza, em que há o a Veneza nunca ter chegado a ir. Já é tão difícil.

Gostava de ir a Veneza como se fosse uma maré baixa.

4 Comments:

Blogger Ithaki said...

Ía escrever-te. Mas perdi-me. (Veneza tem destas coisas. Alguém escreveu de Veneza: 'que música serias/se não fosses água?' - e Veneza é isso: o sentimento básico do adquirido; a beleza admitida; etc.) Mas afinal, o que sabes tu de Veneza (e de ti) Goldmundo? Um dia destes recompomos a nossa Irmandade e eu levo-vos a Veneza para perceberes que este ainda é o nosso mundo.

15/2/06 22:34  
Blogger aquilária said...

pois eu já estive muito perto de veneza e recusei-me a ir lá. tive medo que a veneza que eu visse, para além da água e da pedra e ainda mais, de todos os roteiros turísticos, não fosse igual a essa veneza que se guardou para mim numa espécie de santuário interdito, para dela ter saudades, sem nunca a ter visitado.

16/2/06 15:29  
Blogger Vítor Mácula said...

Mestre Gold.

Contraponto junger ernst dum país chamado Eumeswil (cujo livro com o mesmo título, já que nos intervimos literariamente com Tolkien, C.S. Lewis e etc, vivamente recomendo):

Os homens descobriram a desertidão na lua, porque levaram com eles o seu próprio deserto interior.

Abraço, e bom fim de semana.

17/2/06 17:38  
Anonymous Anónimo said...

Ithaki, faça isso. Veneza decerto o gostaria também de receber...

17/2/06 23:46  

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