23.1.06

as coisas quando ninguém



As pessoas para quem uma história quer sempre dizer qualquer coisa não sabem que há outras para quem qualquer coisa quer sempre dizer uma história. Não sabem que há pessoas que trazem consigo fios de tempo velho como se trouxessem fios de teia de aranha no cabelo, que olham cada coisa do mundo como se o mundo todo lhes chegasse em imagem de espelhos cansados. Não sabem, e por isso se admiram quando vêem pessoas que vivem como se estivessem quase a chegar a uma história qualquer. Não lhes queiras mal por isso, não? São pessoas que não sabem que foi pelo fim que começou a tua história.


Somos coisas que andam à espera, separados da luz na janela da casa fechada. Andamos no mundo como se nos sentássemos ao canto: tão difícil tocar. Tão difícil enxugar os olhos com sorrisos feitos a lápis. E tentamos, tentamos tudo. Ver as flores da cerejeira como se fôssemos a primeira flor a tombar. O voo breve da garça, como se dele ficasse sempre marcado o céu. Sair do tempo devagarinho, como quando saimos do quarto de uma criança a dormir, quando pedimos às tábuas velhas do chão que não gritem. Tentamos tudo e somos sempre esta coisa à janela dos mundos. É por isso que pinturas e fotografias e músicas e coisas escritas à margem nos podem fazer tão tristes, é só por isso. Somos tão iguais a elas todas, coisas prendidas ao tempo velho como se não houvesse nada entre o princípio e o fim, entre o cedo demais e o demasiado tarde. Cai neve lá fora, ou caiu no primeiro dia do mundo, ou devia ter caído no dia em que os meus olhos se abriram. Cai sempre a neve que alguma vez o céu largou, sempre vazio o bule amolgado.


E somos como as coisas quando ninguém as vê.

[fotografia de katia chausheva]

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

pois eu até daqui consigo ver-te...

e sim! posso dar-te um bule cheio, para que regues a cerejeira breve, para que sejas dela o último a tombar...
(não posso desamolgar o bule, isso não... mas repara como a água ganhou forma...)

e sim... os tempos parados começam sempre do fim!

25/1/06 09:43  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro Goldmundo.

Tão sós como uma criança perdida... aí nos encontramos e abraçamos ou agredimos.

Nesse sentido, tudo é grito, até a ternura.

E se as estórias quisessem dizer algo para além do que contam, seriam (serão?)... outras estórias ;)

Abraço.

25/1/06 10:55  
Blogger aquilária said...

gosto de coisas com histórias dentro. gosto de objectos antigos, não utilizáveis, que existem apenas para que eu os olhe e os sinta, a cada olhar. gosto de alguns espaços aparentemente desabitados, gosto de momentos que quase revelam um enigma, como quando me perco (?) numa aguarela de turner ou no olhar de um gato á janela ou numa cantata de bach. e gosto de pessoas que são como naturezas mortas, também elas paradas, uma respiração suspensa entre as sombras e a luz.
e por tudo isso, aqui fica o meu abraço.

25/1/06 12:50  

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